
Uma bioconversa com Maria Alves Viana Batista
Maria Alves Viana Batista, utente do Centro Paroquial e Social de Lanheses, nasceu no ano de 1935, em Lanheses, Viana do Castelo, no seio de uma família humilde. Depois de vencer a luta desproporcional contra uma grave meningite, fez-se crescida através da força do trabalho, sempre pronta para qualquer outro desafio. Viveu em Lisboa, Estados Unidos da América e na região do Algarve, antes de regressar ao seu Minho natal. Hoje, depois de uma vida plural, pautada a experiências que bem demonstram a sua enorme capacidade de adaptação, Maria indica-nos os ases de trunfo para uma caminhada bem conseguida: humildade, honestidade, respeito e… aproveitar intensamente cada gota de vida que o Senhor nos dá.
O nascimento de uma jovem guerreira
Maria Alves Viana Batista nasceu a 19 de junho de 1935, na pitoresca freguesia de Lanheses, no concelho de Viana do Castelo. Cresceu no seio de uma família humilde, contribuindo para uma mão cheia de irmãos, que lutava para sobreviver com o pouco que tinham. “A minha casa era de terra batida, como era comum na época, e a minha infância foi marcada pelo trabalho”, recorda.
Desde muito cedo, Maria enfrentou desafios significativos e demasiado injustos para tão tenra idade. Aos seis meses, contraiu meningite, uma doença que quase lhe tirou a vida. “O médico até disse à minha mãe que, se repetisse, eu não iria ser capaz de sobreviver, mas com a graça de Deus fiquei bem”, explica. A meningite deixar-lhe-ia algumas sequelas temporárias, de tal modo que apenas começou a andar por volta dos sete anos, com a ajuda de um carrinho especial que a sua mãe lhe havia conseguido para auxiliar a recuperação. Apesar dos sucessivos prognósticos médicos conservadores, Maria mostrava-se feita da mesma matéria com a qual se produz o otimismo e resiliência.
Recorda também da infância o exemplo de trabalho árduo deixado pelo seu pai. “O meu pai trabalhava muito como jornaleiro e como mineiro para ajudar a garantir o sustento da família”, afirma. A profissão de mineiro, naquele contexto histórico, forrou de memórias não só a família de Maria, mas também incrementou a identidade e o espírito das comunidades na envolvente da Serra de Arga, criando “histórias dos tempos do volfrâmio[1]”. O volfrâmio, extraído das entranhas da Serra de Arga, era um material muito valorizado nessa época da Segunda Guerra Mundial, devido à sua importância para a indústria bélica.
Porque nem só de trabalho se construía o seu quotidiano, Maria também lembra, com um especial carinho, as brincadeiras simples da infância, na companhia dos amigos e dos seus irmãos. “Nós não tínhamos brinquedos, mas a nossa imaginação era o que bastava para nos divertirmos”, afirma. As festas tradicionais da aldeia, como o São João, eram também momentos de grande alegria. “Ai, eu adorava as festas do São João, com as fogueiras e as danças. Era uma época muito alegre e bonita”, recorda.
A infância de Maria foi ainda marcada por uma forte ligação à natureza. Passava horas a explorar os campos e a observar os animais. “Eu gostava de ver os pássaros e os coelhos nos campos. A natureza sempre me trouxe paz e ainda hoje ma traz”, comenta. Essa conexão com a natureza permaneceria ao longo de toda a sua vida, influenciando alguns dos seus gostos e passatempos.
Dos montes de São Pedro às asas do sonho americano
Recuperada e já com a marcha adquirida, Maria começou a trabalhar, ajudando a roçar mato em montes da localidade vizinha de São Pedro D’Arcos. Aos 10 anos, tal como muitas crianças da sua geração, Maria também cuidava do gado, nesses mesmos ou por outros montes, e participava nas mais diversas tarefas agrícolas. “Cheguei a limpar poços de água a muitos metros de profundidade”, acrescenta. Para trás, ficava por concluir a escola primária, em frente seguiam um espírito cada vez mais resiliente e, apesar das dificuldades, a esperança material de um futuro melhor. “Naquela época, estudar não era prioridade para as crianças da minha geração”, explica. Maria viria a concluir, com esforço e dedicação, a instrução primária alguns anos mais tarde.
Além das tarefas agrícolas, Maria também ajudava a sua mãe nas lides domésticas, aprendendo desde cedo a cozinhar e a cuidar da casa. “A minha mãe ensinou-me a fazer pão e a cozinhar pratos simples, mas saborosos. Esses ensinamentos foram preciosos para a minha vida”, afirma.
Aos 16 anos, mudar-se-ia para Lisboa para trabalhar como empregada doméstica e aí permaneceria até aos 19 anos. Com uma determinação inabalável, reconhecida por tantos quantos se cruzou até aos dias de hoje, conclui, em Lisboa, a quarta classe de modo a conseguir obter a tão desejada carta de condução, um feito que lhe trouxe um visível orgulho, ainda presente. Foi também aí, algures entre as sete colinas, que conheceu o seu primeiro companheiro, com o qual haveria de viver maritalmente por 18 anos.
Aos 40 anos, Maria e o seu companheiro, decididos a encontrar uma vida melhor, emigrariam para os Estados Unidos da América. Estabeleceram-se no estado de New Jersey[2], uma escolha natural, sendo a preferida de, tal como eles, muitos outros portugueses. Fizeram a viagem de avião e, ao chegarem, de modo a poderem entrar no país, apresentaram a morada de um seu conhecido, “o senhor Henrique, natural de Arcos de Valdevez”. “O senhor Henrique precisava de uma empregada e contratou-me como cozinheira”, recorda Maria. Esse passo haveria de ser fundamental, pois permitiria assegurar a legalização de Maria e, com ela, a permissão de residência no país. “Trabalhei para o senhor Henrique durante três anos e, depois de conseguir os documentos legais, fui trabalhar numa empresa que se chamava Chase Aircraft Company. Era uma fábrica que fazia componentes para aviões e navios. Era uma fábrica enorme, com dezassete mil pessoas a trabalhar, mas apenas alguns portugueses. Foi aí que aprendi algumas palavras em inglês para me conseguir virar”, afirma.
Apesar das dificuldades, Maria lembra-se deste período nos Estados Unidos da América como uma experiência enriquecedora. “Na América, trabalhava muito, mas também aproveitava as festas tradicionais, que eram costume lá, como o Dia de Ação de Graças. Aprendi também a ser mais forte e a valorizar o que ia tendo e o que ia conseguindo”, afirma. Durante os nove anos que viveu nos Estados Unidos da América, Maria fez poucas amizades, mas recorda, de modo especial, um amigo que lhe alugou a casa onde permaneceu durante todo esse tempo. Embora não mantenham contacto atualmente, a sua gratidão e o seu carinho mostram-se ainda bem presentes.
Após 9 anos nos Estados Unidos da América, Maria regressou a Portugal e decidiu envolver-se “no comércio das feiras”, vendendo roupas em mercados um pouco por toda a região do Algarve. A rotina incluía viagens para cidades como Faro, Lagos e Vila Real de Santo António. “As feiras eram muito importantes para nós. Era uma vida dura, mas muito intensa e apaixonante. Conhecíamos sempre muitas pessoas novas e, graças a Deus, lá íamos conseguindo o ganha-pão”, afirma.
Maria casou-se duas vezes ao longo da sua vida. O seu primeiro relacionamento perduraria por 18 anos. Mais tarde, casar-se-ia “pela igreja, com António Dantas Batista. O meu último marido era uma pessoa muito boa e juntos tivemos uma vida tranquila”, recorda.
O seu largo caminho haveria de lhe reservar algumas perdas familiares que, tal como outras dimensões, fazem naturalmente parte do legado da vida. Apesar da verdade contida nesse facto, custaram-lhe muito as partidas dos pais, marido e irmãos. De entre todos os irmãos, Maria mantinha uma relação muito próxima com a sua irmã Olivia, com quem dividia o dia a dia, no Lar do Centro Paroquial e Social de Lanheses. As duas eram inseparáveis e partilharam muitos momentos especiais. A morte inesperada e repentina de Olivia abalaria profundamente Maria. “A perda da minha irmã foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Ela era a minha confidente e melhor amiga, ajudava-me muito”, recorda com grande emoção.
Ativa e com uma vitalidade extraordinária, Maria mantém hoje laços fortes com os sobrinhos e outros familiares. “A família é tudo para mim. Sempre que nos reunimos é uma alegria”, afirma.
Uma sueca em Lanheses e o quarteto de sábios conselhos
Nos seus tempos livres, Maria gosta de passear, jogar cartas, “sobretudo sueca”, e socializar com amigos e familiares. Apaixonada por “bacalhau cozido com batatas à moda antiga”, um prato tradicional tão português que lhe ajuda a reavivar muitas memórias da infância. “Hoje em dia até como pouco, mas gosto de saborear uma boa refeição. Ai se gosto” diz Maria com um sorriso. Além do bacalhau, também não se faz “rogada” a pratos simples, reconfortantes e igualmente tradicionais como a feijoada à minhota, que também lhe lembram os almoços em família.
Maria adora passar tempo ao ar livre, especialmente em parques e jardins, onde pode apreciar a natureza e relaxar. Jogar cartas é uma das suas atividades favoritas, proporcionando-lhe momentos de diversão, competitividade, mas também camaradagem. “Adoro uma boa partida de cartas com os amigos, se for sueca melhor! É uma ótima maneira de passar o tempo e manter a mente ativa”, comenta.
Maria carrega consigo muitas memórias de uma vida cheia de desafios e conquistas. Desde os tempos em que limpava poços a vários metros de profundidade até às experiências nas feiras e a convivência com amigos e familiares, cada momento foi significativo. “A vida não foi fácil, mas cada momento que vivi até hoje valeu a pena. Trabalhei muito, mas também aproveitei,” reflete Maria.
Recorda com carinho os valores que herdou dos pais: humildade, honestidade e respeito pelos outros. “O meu pai sempre dizia que ser bom e fazer o bem é o mais importante na vida”, relembra. Foram estes os componentes que haveriam de dar estrutura à bússola de Maria, ao longo de toda a sua vida. Foram estes os valores que a ajudaram a enfrentar as adversidades como as perdas ou os desafios da mudança com a dignidade e a força necessárias.
Com uma visão positiva da vida, Maria valoriza cada momento junto dos seus, orgulhando-se das amizades que cultivou ao longo dos anos. “Além da família, os amigos são com outra família que vamos escolhendo ao longo da vida, como se costuma dizer. É importante estimá-los bem…”, considera. “A vida passa depressa, mas é importante vivê-la o melhor possível. Mesmo com as dificuldades, aprendi que o que importa é ir aproveitando cada momento. Se tivesse de dar um conselho às crianças mais novas, de agora, dizia-lhes como me dizia o meu pai, que Deus o tenha. Ele dizia que é importante ser-se humilde, honesto e respeitoso, mas também acho que é importante viver a vida a cada momento”.
Hoje, aos 89 anos, Maria brinda connosco à vida, com uma bem visível gratidão e com um testemunho rico em resiliência, determinação e pluralidade.
[1] O volfrâmio, também conhecido como tungsténio, foi um dos minérios mais explorados na região da Serra de Arga. Além da sua beleza natural, a Serra de Arga é também conhecida pela sua intermitente, mas importante atividade mineira, que remonta a tempos imemoriais. Já nos primeiros séculos depois de cristo, os romanos aí exploravam vários tipos de metais como o estanho, a prata ou o ouro. Ainda hoje, em diversas localidades, ao longo de toda a mancha da Serra de Arga, pontificam relevantes vestígios históricos de mineração.
[2] New Jersey é um dos 50 estados que compõe os Estados Unidos da América. É uma região conhecida por ser um dos destinos mais interessantes para os emigrantes portugueses que partiam em busca do “sonho americano”. A localidade de Ferry Street, em Newark, New Jersey, é conhecida por muitos como “Little Portugal” (Pequeno Portugal), devido à grande presença de emigrantes de origem portuguesa.
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