
Uma bioconversa com Madalena de Sousa Barros.
Madalena de Sousa Barros, utente do Centro Paroquial e Social de Santa Leocádia de Geraz do Lima, nasceu em Chitembo, Angola, em 1935. Depois de uma infância difícil, viu-se envolvida na Guerra Civil Angolana. Conseguiu fugir com o marido e com os filhos para Portugal, onde encontrou a paz e a tranquilidade que nunca havia tido. Hoje é uma mulher de fé e feliz que aconselha os mais novos a investirem nos estudos e a terem juízo. Um calvário no planalto Madalena nasceu em 04 de agosto de 1935 em Chitembo, junto da nascente do rio Kwanza[1], no Planalto Central de Angola[2]. Filha mais nova de uma família pobre, cedo ficou órfã de pai. “A minha mãe coitadinha foi-nos criando como conseguiu. O nosso pai morreu muito cedo. Eu tinha um aninho, era muito novinha mesmo… ficamos os três, eu e os meus irmãos, com a nossa mãe”, recorda. Madalena vivia pobre, “num barraco no meio da mata”, sem posses, sem qualquer vislumbre de conforto, sem frequentar a escola e foi “crescendo assim” . “Aos sete anos, um tio meu soube que eu e os meus irmãos não íamos à escola e foi-nos buscar. Obrigou a minha mãe a entregar-nos para nos colocar na escola. Eu não queria ir com ele, mas percebi que tinha mesmo de ir… ter de deixar a minha mãe, custou-me muito. Chorei muito naquela altura”, revive Madalena. Embora o seu tio, zelando pelo futuro dos sobrinhos, tivesse boa intenção, deixar a mãe foi uma experiência profundamente dolorosa para Madalena. Desde esse momento, praticamente não voltou a ter contacto com a mãe. Em casa dos tios, Madalena ia crescendo. Frequentava a escola, coisa que não lhe agradava, e nos tempos livres aprendia a costurar. “Andei na escola uns cinco anos, mas nessa altura não fiz a quarta classe, não cheguei até ao fim porque desisti, não dava nada”, afirma com humildade. No entanto, pela necessidade, viria a concluir a instrução primária alguns anos mais tarde. Aos onze anos foi trabalhar “como criada de servir de um casal”, porém “esse casal tinha uma filha que se portava muito mal”. Queria que Madalena a acompanhasse “nas brincadeiras com os rapazes” e começou a levá-la “por maus caminhos”. Para escapar àquela circunstância, Madalena vê-se forçada a abandonar o trabalho e a mudar-se para casa de uma prima. A nova mudança voltou a não correr bem. A sua prima, de feitio difícil, tratava-a muito mal, batia-lhe e humilhava-a. Apesar de ser apenas uma criança, Madalena já tinha enfrentado demasiados desafios e sentia-se cada vez mais isolada e infeliz. Num dia de maior sorte, um dos seus irmãos mais velhos, preocupado com o futuro da jovem menina, decidiu acolhê-la. “Ele pertencia à Igreja Protestante, era membro dessa Igreja e integrou-me numa das missões”, relembra. Na missão, Madalena tinha a responsabilidade de ajudar “umas enfermeiras americanas que lá trabalhavam”, auxiliando-as em tudo o que precisassem. Com o passar dos anos e com o acumular da experiência, Madalena aprendeu a arte da enfermagem e passou também a praticá-la. Durante o período de permanência na missão Madalena conheceu Manuel, o seu futuro marido. Manuel era um jovem português, emigrado em Angola e que “lá tinha uma loja comercial”. Depois de algum tempo de namoro, oficializaram a sua união no preceito da igreja católica. No entanto, por divergências de credos, Madalena viu-se obrigada a abandonar o seu trabalho na missão protestante. A cerimónia foi simples, mas aguardada com grande expectativa. Recém casados e sem outras alternativas, o jovem casal decide entregar-se inteiramente ao negócio. Madalena relata que, nesses tempos, moravam “nos fundos da loja” que tinham em Chitembo, “porque era muito difícil ganhar dinheiro para uma casa própria”. Infelizmente, o comércio não prosperou e “teve de fechar”. Para conseguirem “sobreviver e juntar algum dinheiro”, o marido de Madalena aceitou um trabalho “numa fazenda de sisal[3]. Mais tarde, já com dois filhos nascidos e a família a crescer, o jovem casal, decide mudar-se para Silva Porto[4]. “Lá, com a ajuda de um senhor de Geraz, o senhor Vidal, abrimos um outro comércio, mas o negócio voltou a não correr bem. Ainda tivemos mais três casas de comércio. Não correram bem, porque era difícil vender e as pessoas não tinham dinheiro, mas nós também tínhamos de tentar ganhar a vida… lutar por ela”, revive. Com o nascimento do terceiro filho, os encargos aumentaram e o marido de Madalena “teve de arranjar um novo emprego”. Após várias tentativas, “conseguiu trabalho como motorista da Câmara Municipal”. Depois de terem passado por tanto, Madalena e Manuel haviam, finalmente, encontrado alguma estabilidade e quietude. Fuga à guerra com cinco contos no bolso Madalena levava uma vida modesta e tranquila, até que em 1975 a guerra colonial rebentou. A violência e o medo tomaram conta das ruas, e “os soldados atacavam os brancos sem piedade”. Madalena e a sua família tiveram de se esconder. Durante esse período passaram “muita fome” e necessidade. “Não podíamos sair de casa, nem trabalhar. Para comer tínhamos de sair escondidos e pedir às mercearias, que também estavam fechadas. Batíamos às portas para nos darem alguma coisa… passou-se muita fome. Lembro-me bem, morreu muita gente devido à guerra em Angola” acrescenta. O dinheiro escasseava e a vida tornou-se insuportável. Madalena e a sua família não queriam deixar Angola, mas sentiam que não tinham outra escolha e decidiram mudar-se para Portugal. “Custou-me muito, mas com a guerra não vivíamos, era só sobreviver a cada dia. Tivemos de comprar os passaportes. Falamos com gente conhecida para os conseguirmos e tratarmos da papelada toda. Viemos embora sem nada, deixamos lá tudo, deixamos lá tudo mesmo. Cada um dos adultos só tinha direito a trazer cinco contos no bolso, mais nada”, recorda. Esta despedida deixou uma marca profunda em Madalena, mais uma experiência difícil que carregará consigo para sempre. Depois de uma complicada viagem de avião, desde Nova Lisboa[5], Madalena e a sua família aterram finalmente na capital portuguesa. Aí permanecem por alguns dias até conseguirem um táxi que os trouxesse para Santa Leocádia de Geraz do Lima, terra natal de Manuel. Uma nova vida em Santa Leocádia de Geraz do Lima Assim que chegaram a Santa Leocádia, Manuel “arranjou um emprego, na recolha de resíduos”, na Câmara Municipal de Viana do Castelo. Madalena procurava, enquanto se dedicava a cuidar da casa e dos filhos, conhecer e adaptar-se a uma terra muito diferente da sua. “Eu não estava habituada aos costumes de cá. Lembro-me bem que uma das coisas que me custou muito, quando cá cheguei, foi ver o sítio onde ia dormir. Era um colchão de cormo[6]. Debaixo do nosso quarto dormiam as vacas. Em Angola as coisas não eram assim, havia miséria, mas era uma miséria diferente”, acrescenta. Madalena estranhava a nova terra e sentia saudades da sua, mas não desistiu de lutar e procurou trabalho para ajudar a sustentar a família. Felizmente conseguiu-o e exerceu, durante vários anos, a função de auxiliar de ação educativa na escola primária de Santa Leocádia de Geraz do Lima. Madalena gostava muito do trabalho que fazia. Sentia-se útil, respeitada e, aos poucos, foi-se integrando na nova comunidade e fazendo novas amizades. Até se reformar, com a sua habitual doçura, ajudou a cuidar de sucessivas gerações de crianças nascidas naquela terra, que hoje lhe são muito reconhecidas. Madalena aprendeu a gostar de Portugal e sente-se feliz aqui. No entanto, porque as saudades não lho permitem, não esquece as suas raízes e guarda Angola no coração. “Gostei sempre de viver uma vida com tranquilidade, de viver em paz, de conviver com todos e ser boa para os outros. É verdade que houve momentos muito difíceis, a guerra foi um tempo complicado, não sabíamos o que nos poderia acontecer. Ter deixado tudo para trás foi muito duro. Talvez se não tivesse havido a guerra ainda lá estaria hoje. Apesar de viver há mais tempo em Portugal do que o tempo em que vivi em Angola, sinto muitas saudades dos tempos de lá, daquelas pessoas, dos costumes delas, mas também me sinto feliz aqui”, afirma. Atualmente, Madalena dedica muito do seu tempo à paixão pela costura, herdada da infância em casa dos tios. “Faço costura mesmo por gosto”, afirma. A costura é também uma forma de dar utilidade ao tempo livre, que agora tem, e de se distrair de algumas das lembranças mais tristes que persistem, como a partida do seu marido. O futuro de uma vida com vontade Madalena sempre foi uma mulher trabalhadora, que nunca se deixou abater pelas dificuldades. Hoje, aos 89 anos, sente que realizou os sonhos que sempre desejou realizar. “Levei a vida com vontade. Agora quero viver o que me falta com tranquilidade, junto dos meus”, afirma. Se pudesse dar um conselho de vida aos mais novos dir-lhes-ia para “aproveitarem a vida e terem muito juízo, a lutarem por aquilo em que acreditam e a estudarem muito”, pois o estudo é muito importante. Ela própria sentiu isso ao longo da vida e reconhece que se “tivesse estudado mais, talvez tivesse tido mais oportunidades”. Madalena, com o seu sorriso luminoso, é hoje uma mulher feliz que personifica uma história de superação verdadeiramente inspiradora. [1] O rio Kwanza é, com 960km de curso, o maior rio exclusivamente angolano; [2] O Planalto Central de Angola, também conhecido como Planalto do Bié, é uma das mais importantes regiões agrícolas angolanas. [3] O sisal é o tipo de fibra vegetal biodegradável mais produzida em todo o mundo. É utilizado, essencialmente, na indústria têxtil para produção de tapetes, carpetes, entre outros produtos. A sua produção encontra-se em declínio devido à substituição desta matéria-prima por materiais sintéticos; [4] Fundada em 1750, a cidade Silva Porto foi assim nomeada em homenagem ao explorador português António Francisco Ferreira da Silva Porto, um notável comerciante e aventureiro que se distinguiu na região interior de África. António Silva Porto foi, por muitos anos, o único europeu conhecido pelas comunidades habitantes do planalto do Bié. Em 1975, a cidade de Silva Porto passou a ser conhecida por Cuíto ou Kuito, a sua designação atual. [5] Nova Lisboa, atual cidade de Huambo, foi a antiga a capital da província do Huambo. [6] “Cormo”, é uma designação popular para Colmo. Colmo, do latim culmus, refere-se a palha de centeio, trigo ou outro recurso vegetal, utilizado desde a antiguidade para produção de, entre outras finalidades, telhados de habitações e colchões.
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