
Uma bioconversa com Maria Alice Sousa Franco.
Maria Alice Sousa Franco, utente do Centro Paroquial e Social de Lanheses, nasceu de uma família humilde na freguesia de Lanheses, em Viana do Castelo, no ano de 1944. Cedo enfrentou o desafio da perda da mãe e a necessidade de auxiliar a pequena economia familiar. Emigrada em França, depois de uma grande viagem de comboio através do desconhecido, aí encontraria trabalho numa casa nobre, um marido exemplar e filhos especiais. Regressada a Portugal viu a vida colhida por duras perdas, mas também cultivada de memórias, pela graça de Deus, com um valor incalculável. Hoje, através da sua natural doçura, inspira tantos quantos partilham o gosto de a conhecer.
Nascida numa família numerosa de Lamas
Maria Alice Sousa Franco nasceu a 14 de abril de 1944, na freguesia de Lanheses, em Viana do Castelo. Criada numa família humilde, Maria Alice cresceu rodeada pela simplicidade da vida no campo e pelas adversidades de um contexto histórico, muito diferente do atual. “Eu cresci em Lanheses, no lugar de Lamas, porque os meus pais e os meus avós já eram de lá. Vivi aí até aos 22 anos. Trabalhava muito na lavoura, a ajudar o meu pai. Comecei muito pequenina, desde que saí da escola, logo depois de fazer a quarta classe”, recorda. A perda precoce da mãe, quando Maria Alice tinha apenas quatro anos de idade, foi um dos momentos mais difíceis da sua infância e funcionou como um acelerador da necessidade de entreajuda familiar. “A minha mãe faleceu quando eu tinha quatro anos e o meu pai foi quem cuidou de nós. Éramos nove irmãos e foi ele que nos educou e nos formou. Acabei por não ter o amor de mãe, mas agarrei-me à memória dela para seguir em frente e assim fiz. Tinha de trabalhar para ajudar a casa”, relembra com emoção.
Criada pelo pai e pelos irmãos, Maria Alice encontrou também força na união familiar, apesar das dificuldades financeiras que enfrentavam. O pai de Maria Alice, dedicado e trabalhador, criava os filhos com muito esforço, incentivando-os a ir à escola e a aprenderem um ofício. “O meu pai sempre dizia que a educação era a chave para um futuro melhor. Ele fez questão de que todos nós fôssemos à escola. Éramos nove irmãos e cada um seguiu a sua arte. Eu dediquei-me a cuidar da casa e a cultivar a terra para ajudar a sustentar a casa”, explica. Entre as suas principais atividades agrícolas estavam a semeadura do milho, batata e outros alimentos que, apesar de não serem ouro, possuíam um valor ainda mais significativo para a pequena microeconomia familiar. Além de providenciarem o alimento do dia a dia, permitiam também a sua comercialização.
.Mesmo nas tarefas mais exigentes, Maria Alice mostrava-se incansável e dedicada. “Nunca gostei de estar à boa vida. Sempre arranjei algo para fazer, cozinhar, trabalhar no campo e bordar… Olhe, de bordar gostava tanto que me dediquei ao bordado”, afirma.
Apesar das dificuldades, a infância e juventude em Lanheses, foram também marcadas por memórias queridas, como as das festas populares e as das convivências com amigos e vizinhos. “Antigamente em Lanheses, já se fazia a festa do Senhor das Necessidades. Foi sempre uma festa muito, muito bonita. O meu pai, por causa dos namoricos, não nos deixava ir sozinhas à festa e vinha sempre a acompanhar. Os rapazes até me vinham enamorar todos engravatados, mas eu não gostava nada disso. Mais tarde, acabei por ir para França ainda solteira. Até já tinha tido dois namoros, mas nenhum deles me agradou”, recorda com um sorriso.
De comboio para um casamento na Cidade Luz[1]
Com 22 anos, Maria Alice decidiu emigrar para França, com a “Cidade Luz” como destino. Na bagagem, levava o sonho de outras oportunidades, mas sobretudo a missão maior de poder continuar a ajudar o lar, em Portugal, e em particular o seu pai. “Foi uma decisão arrojada, mas o meu pai começou a ficar doente e eu não queria que lhe faltasse nada. O meu pai ficou com a minha irmã e eu lá fui, sozinha, sem saber nada. Primeiro ainda tive de tratar de fazer o cartão de identidade e os documentos todos que precisava, para ir com tudo direitinho”, declara. “Quando chegou o dia, lembro-me como se fosse hoje, desci pelas escadas abaixo com a minha mala de cartão, sim de cartão, o meu pai só me disse: “minha filha não dês desgostos ao teu pai”. Aquilo tocou-me tanto, mas eu tinha mesmo de ir. Fui ter a Viana, meti-me no comboio e fui até ao Porto sem conhecer nada. Eu ia como se fosse de olhos fechados porque nunca tinha saído de Viana. Ainda tive de andar a preguntar às pessoas com quem me cruzava, mas lá consegui saber qual era o comboio para França. Segui viagem sozinha sem conhecer ninguém, chegamos à primeira fronteira em Hendaia e estivemos parados duas horas, até hoje não sei bem o porquê. Depois ouvimos no comunicador a dizer que o próximo comboio para a França era outro. Foi uma confusão, mas eu lá consegui chegar a França”, acrescenta.
Felizmente, Maria Alice já levava consigo a chegada a Paris previamente combinada com um dos seus irmãos que lá residia. Apesar disso, toda aquela empreitada, para uma jovem de vinte e dois anos, que nunca havia saído de Viana do Castelo, parecia, à luz da época e do contexto, uma missão quase impossível. “Quando cheguei a Paris, aquilo era tanta gente! Felizmente, no meio daquela multidão, consegui encontrá-lo. Lembro-me de ter ficado toda contente por ter conseguido fazer a viagem sozinha, mais ainda quando ele me disse que já tinha trabalho para mim, na casa de uns senhores muito ricos. Aquilo foi tudo tão rápido! Ele levou-me logo à casa deles para me apresentar e eles gostaram logo de mim”, afirma.
Uma vez estabelecida em Paris e empregada, a jovem e destemida Maria Alice, procurava adaptar-se à nova realidade, tentando superar as dificuldades que a nova vida também lhe reservava. “Eu não sabia falar nada. Não compreendia nada do que me diziam, foi difícil mesmo! Felizmente os patrões foram muito cuidadosos comigo e ensinaram-me tudo. Diziam-me como se chamavam as coisas, “isto é uma colher”, “um prato” e diziam em francês para eu apreender. Foi com eles que apreendi mesmo. Foram sempre corretos comigo, até ajudaram a tratar de todos os papéis para estar lá com tudo direitinho”, recorda nostálgica. “Ainda estive lá três anos e pouco e aprendi muito. Aquilo era gente muito fina e muito rica. Passava lá, nessa casa, muita gente de classe e eu tentava cuidar de tudo. Era eu quem tratava da lida da casa, de cozinhar, tratar de roupas, de tudo”, acrescenta.
Com um emprego certo e trabalho bem assumido, Maria Alice ia conseguindo algum dinheiro para se sustentar, mas também, tal como era seu primordial propósito, ajudar o seu pai em Portugal. “Fui sempre mandando dinheiro para ele. Mandava quase tudo o que ganhava. Só ficava com dinheiro para comprar roupa para me vestir”, assevera.
Foi durante este período, “em casa dos patrões”, que Maria Alice haveria de conhecer o homem que, através da sua simplicidade, lhe haveria de levar o coração até ao altar. No papel de enamorado, estava um jovem português, transmontano, que havia ido a salto para França para evitar o serviço militar. “Conheci-o no 14 de julho, nunca mais me esqueço. Lá na França fazem uma grande festa nessa data. Eu não sabia muito bem dançar, mas ele pediu e como me parecia muito simples e muito honesto, eu lá fui. Foi assim que começamos a namorar”, recorda. O tempo da paixão aparenta passar sempre mais rápido do que qualquer outro tempo. E assim foi com Maria Alice. Depois de “dois anos e tal de namoro, passados a voar”, os jovens enamorados decidem casar. Maria Alice, apesar de estável e feliz com o trabalho, ver-se-ia obrigada a abandonar o emprego para seguir o novo compromisso. Infelizmente, não seria possível conciliar o seu novo estado e a sua antiga condição laboral.
“Casámos no dia 18 de dezembro de 1969, numa igreja que pertencia à localidade para onde íamos morar. Tivemos de casar lá. Teve de ser, porque, naquela ocasião, ele ainda não podia regressar a Portugal. Lembro-me que, da minha família, só dois irmãos é que foram ao casamento, o meu pai já não podia ir. Já não tinha condições…”, recorda Maria Alice com uma emoção evidente.
Após o casamento, Maria Alice iniciou uma nova fase da sua vida. O marido, homem de vários ofícios e reconhecido pela sua habilidade e pela sua abnegação, dedicou muito do seu tempo ao sector da construção civil. A Maria Alice cabiam o acompanhamento dos filhos, as lides do lar e os trabalhos de costura. “O meu marido era uma esperteza como eu nunca vi. Antes, trabalhou na madeira, mas depois começou a aprender a arte da pedra, primeiro como servente de pedreiro, até fazer vida disso. Depois de alguns anos a trabalhar e apreender a arte, achou que podia criar uma empresa e assim foi. Durante uns anos, ainda teve oito homens a trabalhar para ele. Até que um dia, um empreiteiro o enganou e não lhe pagou parte de uma obra que lhe tinha contratado… olhe, são coisas da vida! Eu trabalhava em casa, como costureira. Trabalhei sempre…”, conta.
Com o casamento chegaram os filhos. Maria Alice e o marido haveriam de ter três. A primeira gravidez ocorreu apenas três meses após o casamento, “entretanto, de seguida, haveriam de nascer os outros”. Quis Deus que, do último parto, nascesse uma pessoa especial, “um menino com trissomia 21”.
Esse momento teve tanto de duro como de especial. Muita coisa se havia alterado, não só na logística da família em França, mas também em Portugal e em Lanheses, para onde Maria Alice pretendia mudar-se. Com a nova condição, com a necessidade de cuidar o melhor possível do seu menino, numa terra que também era sua, o desejo de regresso crescia de dia para dia. No entanto, a mudança iria representar mais um grande desafio. “Eu continuei a trabalhar e até tivemos um enfermeiro que ia lá a casa para ajudar com o menino. Ele lá se foi desenvolvendo. Começou a andar aos três anos. Foi para uma escola especializada e demos-lhe tudo o que podíamos, mas foi duro”, afirma. “Fomos vivendo, mas tive sempre, dentro de mim, uma preocupação muito grande por ele. Eu pensava: Como seria a sua vida?”, questiona retoricamente. “Um dia, o meu marido teve um acidente junto à Pont des Arts, em Paris.
Foi um acidente muito grave, mas ele recuperou. Tudo aquilo, mais a preocupação com o futuro do meu filho, mexia muito comigo. Então, um dia, falei com o meu marido e achamos que seria melhor voltar para Portugal, para ele apreender o português e estar junto da família. E assim fizemos, poupamos muito durante aqueles anos. Tudo o que eu ganhava era para as despesas da casa e o que o meu marido ia ganhando colocava-se de parte. Conseguimos construir uma casa cá em Portugal, que sempre que vínhamos de férias íamos ajudando a construir. Quando achamos que já conseguíamos vir, o meu marido tratou de vender tudo o que tínhamos lá. Vendemos o carro, uma casinha e voltamos. Ainda assim, foi um bocado difícil regressar. O meu pai tinha falecido ainda eu estava na França. Na herança, fui eu que fiquei com a parte dele. Depois paguei aos meus irmãos, aquilo que era devido, e fiquei eu com as coisas para mim. No fundo, estivemos lá quarenta anos, quando chegamos já não conhecia muita gente. Tudo estava muito diferente. Já não sabia o que era trabalhar no quintal, mas tinha de ser, ainda cheguei a arrendar outros campos para ter os meus animais”, acrescenta.
A nova vida em Portugal exigiria uma profunda devoção aos cuidados de um filho, que sem esquecer os outros, era tão especial. O tempo foi passando, pautado pela naturalidade de um profundo espírito humano tão compassivo como o de Maria Alice. Apesar de já ter partido, Maria Alice lembra o seu menino com grande saudade, com uma quase palpável sensação de missão cumprida, como alguém que exerceu um papel muito particular de grande mãe. “Quando viemos para Portugal, ele adaptou-se bem à escola, ainda era lá em baixo…”, recorda, referindo-se ao atual e bonito edifício da Junta de Freguesia de Lanheses. “Depois ainda veio para a nova escola, mas, por fim, já não queria estudar mais. Ele era um menino trabalhador. Em casa fazia de tudo… Até eu apreendia a fazer arroz com ele. Infelizmente faleceu muito cedo, tinha vinte e dois anos. Nessa altura ele tinha bastante peso. O médico receitou-lhe uma medicação, que começou a ajudar, mas um dia à noite sentiu-se muito mal, tivemos de ir para o hospital e ele não aguentou. Era um jovem maravilhoso”, afirma emocionada. “Esse momento foi muito duro. Eu não estava preparada para isso. Eu e o meu marido sofremos muito. O meu marido, nessa altura, também já tinha sido operado ao coração, a saúde dele já não era a melhor… um dia fomos ao cemitério e ele caiu. Não se sentiu bem e, daí em diante, pouco durou. Faleceu onze meses depois do meu filho. Nunca me senti tão triste na vida, perdi os dois de uma forma muito rápida, foi duro. Eu tinha 64 anos…”, lamenta.
Em todo o caso, a vida teria de seguir e Maria Alice, bem consciente da necessidade de continuar a zelar pelos seus, “arregaçou as mangas” e, com as forças que lhe restavam, continuou a trabalhar. “Daí para a frente comecei a tratar de pessoas vizinhas, primeiro de uma senhora, onde fui para lá, estive a tomar conta dela de dia e de noite. Mais tarde pediram-me para cuidar de um moço que tinha uma deficiência. Aí eu já não conseguia muito bem, porque eles queriam que eu fosse para a casa deles. Eu tive lhes dizer que aceitava, mas o menino teria de vir para a minha casa e assim foi. Tratei dele durante uns cinco anos, mas com o tempo deixei de poder e a família tomou conta dele novamente”, conclui.
A costura da fé e da sabedoria
Hoje, já com uma vida mais tranquila, Maria Alice dedica o seu tempo a pequenas tarefas como bordar, cozinhar e cuidar da casa. Continua fiel às suas crenças, assistindo à missa aos domingos e rezando o terço diariamente. Com um respeito imaculado pelo outro, apesar de uma vida difícil, Maria Alice mantém uma crença imperturbável em Deus. “Foi Ele que me ajudou sempre a ter coragem de enfrentar as situações que se apresentavam… graças a Ele fiz tudo aquilo que queria. Tudo o que consegui na vida foi graças a Deus. Até o meu marido, que era uma jóia. Fui muito feliz com ele. Sempre tivemos um bom entendimento e conseguimos fazer as nossas coisas. Fui muitíssimo feliz com ele”, afirma. Hoje não tenho mais ninguém da família de origem, os meus irmãos já faleceram, mas até a família que ainda me resta, que é muito importante para mim, resta-me pela graça de Deus”, acrescenta.
De entre as pessoas que mais a marcaram na vida, Maria Alice destaca o seu pai, a sua avó paterna, o seu marido e os seus filhos. “O meu pai, a minha avó e o meu filho foram pessoas que me marcaram muito. Guardo hoje com carinho a memória deles. Também o meu marido, fui muito feliz com ele. E, hoje, a minha filha que está comigo também é muito importante na minha vida”.
Com uma vida tão exigente, cheia de grandes aprendizagens, Maria Alice reserva para os mais jovens, através de palavras acessíveis, conselhos simples, mas cheios de sabedoria: “Digo-lhes sempre para serem amigos da família. Para aprenderem algo de que gostem, para poderem começar a vida. Lembro sempre o trabalho. É do trabalho que vem tudo. O trabalho é muito importante, sem trabalho não temos nada… e também digo que é preciso ter calma. Parece-me que as gerações mais novas se enervam com tudo, com a mais pequena dificuldade, e não tem de ser assim. É preciso conversar e não discutir. Acho que também devemos pensar pela nossa cabeça e termos cuidado com os amigos que escolhemos”, assegura.
A frequentar o Centro de Dia no Centro Paroquial e Social de Lanheses, Maria Alice, além do convívio, mantem o dom da costura e continua a bordar, a fazer arranjos de roupas, suas e de outros, e a “fazer malha”, como gosta de dizer. “Hoje ainda faço um bocadinho de jardim, mas muito pouco, porque não posso das costas. Faço a comida, de vez em quando um cozido à portuguesa, que é o meu prato favorito. Ai o cozido, que maravilha!… Ainda passo a ferro e arrumo o meu quarto. Gosto de me manter ocupada, nunca gostei de estar à boa vida. Já não faço muita coisa, mas gosto de vir para o Centro de Dia e de costurar”, declara. “Agora espero ter um fim bom, viver em paz e junto da minha família e da minha filha com quem estou”, acrescenta.
Hoje, Maria Alice vive rodeada de memórias e de uma história de vida repleta de desafios, mas também de amor. Maria Alice é uma mulher que personifica a determinação e a força perante a dificuldade. Apesar das perdas e das arduidades, encontrou alegria nas pequenas coisas da vida e construiu um legado de amor e dedicação que, através da sua doçura natural, inspira tantos ao seu redor. “Foi uma vida dura, mas cheia de felicidade. Estou agradecida por tudo o que vivi até hoje”, conclui, com um brilho no olhar, ao qual ninguém conseguiria ficar indiferente.
[1] Conhecida como a “Cidade Luz”, Paris recebe este apelido devido a um conjunto de curiosas razões que, embora controversas, são comumente difundidas como justificação: Paris foi uma das primeiras cidades a adotar a iluminação pública com lampiões, por ordem do Rei Luís XIV, o Rei Sol; é tida como o berço do Iluminismo, um movimento intelectual que promove ideias de razão, liberdade e conhecimento; Paris foi uma das primeiras cidades do mundo a adotar e disseminar a iluminação publica elétrica.
Deixe um comentário