
Uma bioconversa com Maria José Ferreira.
Esta bioconversa foi concretizada em coautoria com os meninos do quarto ano do Centro Escolar de Lanheses, hoje Vila Histórica. Eles são os mais novos membros da equipa alargada do Incríveis Pessoas Comuns e, como tal, contarão com o seu próprio capítulo no próximo livro “Incríveis Pessoas Comuns Volume II“, a ser editado no último trimestre de 2025.
À Beatriz, ao Davi, ao João, ao Kelvin, à Laura, ao Leandro, ao Leonardo, à Madalena, à Mafalda, ao Mateus, à Matilde C., à Matilde G., ao Rafael, à Rita, ao Rodrigo, à Íris e ao Martinho, desejamos muitas, muitas felicidades e uma vida cheia de coisas boas. Muitos parabéns pela vossa atitude exemplar e bonita, que a possam levar para a vida e recorda-la sempre como mais uma página bonita do vosso percurso!Estaremos sempre aqui para o que precisarem!
Com gratidão, com um abraço e muitos beijinhos,
a equipa Incríveis Pessoas Comuns.
Da terra da cereja às gentes da Casa das Brolhas
Maria José Ferreira nasceu a 31 de janeiro de 1923, em Resende, uma vila portuguesa, no distrito de Viseu, muitas vezes considerada como a porta de entrada para a região do Douro vinhateiro. Resende é uma localidade também muito famosa pelo seu pequeno fruto de cor vibrante, de polpa suculenta e sabor doce, que cresce em árvores do género Prunus[1]. Fruto, esse, que é celebrado anualmente, por volta do mês de maio, e que atrai forasteiros de todos os lugares a um evento apelidado como ‘Festa da Cereja’. Tal como sucede com a cereja, quis a Divina Providência que a doçura única daquela menina também despontasse entre as terras férteis de Resende. “De raparigas era só eu. Tinha era três irmãos rapazes. Olhem meninos, um dos meus irmãos tornou-se padre, mas os outros também estudaram. Um acabou, mais tarde, por imigrar para o Brasil. O outro ficou empregado em Resende,” recorda Maria José. Maria José haveria de experienciar uma infância incomum. Uma infância marcada por momentos que lhe exigiriam uma grande capacidade de adaptação para a tenrura da sua idade, mas também por momentos de grata alegria. “Andei na escola primária em Resende, mas não terminei. Saí da escola para ter aulas particulares, com umas vizinhas lá de casa dos meus pais. Essas vizinhas eram amigas da família e davam aulas. Eu não podia ir para a escola porque a escola ficava muito longe de casa. Eu tinha de ir a pé e como eu era um bocado fraca, não podia ir. Além de que a minha mãe também era muito rigorosa com os namorados”, relembra. “O facto de a minha mãe me ter tirado da escola marcou-me muito. Eu gostava tanto da escola, de conviver com todos os meus amigos, mas tive de deixar,” acrescenta, revivendo um pequeno momento de nostalgia e leve tristeza. No entanto, apesar de curtos, esses mesmos tempos de escola, trazem-lhe à lembrança outras memórias, essas bem mais felizes, daquelas que nos recolhem a lágrima e nos reabrem o sorriso. “Eu andava sempre a correr, sempre na brincadeira”, recorda. “Íamos até à escola sempre a brincar e, nessa altura, gostava de jogar à macaca, às escondidas, dos jogos de roda, de dançar, de correr. Estávamos sempre a correr e a brincar, mas sonhos não tínhamos muitos… também não havia tempo para isso”, acrescenta. Aos dez anos, Maria José mudar-se-ia para Lamego, uma cidade que mantinha uma atmosfera tradicional, com ruas estreitas e edifícios antigos, cuja vida e o comércio, com destaque para o comércio do vinho do porto, se desenrolavam, quotidianamente, entre o Castelo, a Sé Catedral e o Santuário de Nossa Senhora dos Remédios. “Fui para Lamego quando tinha cerca de dez anos. Fui morar para a casa particular de umas senhoras muito nobres, da família da Casa das Brolhas[2]. Essas senhoras, que eram duas irmãs, não viviam lá na Casa das Brolhas, mas sim numa outra casa, em frente à Igreja de Almacave[3]. Elas queriam muito que eu fosse viver com elas, para lhes fazer companhia. Como o meu pai era o seu procurador[4], nessa altura, pediram-lhe para eu ir, para casa delas, para lhes fazer companhia. Não fui para trabalhar, mas para ajudar. Eu era quase como uma dama de companhia: lia tudo o que elas queriam, quando era para sair tinha de ir, também, a acompanhar as senhoras… tínhamos horários para levantar, missa todos os dias, em casa, e confissões de quinze em quinze dias. Era uma casa muito grande, havia muitas empregadas, eu não precisava de me preocupar, se mais trabalhasse era porque queria”, recorda. Durante os cerca de dez anos de estadia, em casa dessas “nobres senhoras”, Maria José não haveria de se cingir à companhia, esses foram, também, tempos de grande e exclusiva aprendizagem. “Enquanto lá vivi, aprendi muitas coisas! Todas as segundas-feiras havia uma reunião com professoras, pois iam lá muitas meninas para apreender a bordar, a fazer renda de bilros[5], para aprenderem catequese, para aprenderem a ler, e eu aprendia! Aprendia e até ensinava algumas coisas também. Estive nessa casa, praticamente, até aos meus vinte anos, depois voltei para Resende. Lembro-me de, nessa altura, eu ter voltado para casa da minha família porque um dos meus irmãos ia dizer a primeira missa e eu tinha de o ir acompanhar. Lembro-me de as senhoras terem ficado com muita pena. Não queriam que eu viesse embora, recordo-me de me dizerem: ‘A nossa alegria vai-se embora’, afirma Maria José. As duas maiores alegrias e a potencial efemeridade da vida Voltada a casa dos pais, Maria José começou por ministrar catequese às crianças de Resende e a ajudar no que mais fosse necessário. “Durante esse tempo ensinava catequese. Foram cerca de nove anos. Durante esse tempo, estava por casa para ajudar os meus pais e também para a acompanhar o meu irmão que era padre. Mais tarde, quando eu já tinha vinte e nove anos, casei. O meu marido vivia lá na Vila de Resende. Nós fomo-nos conhecendo… ele também conhecia a minha família. Em solteira, até foi com ele que aprendi a dançar, apesar de eu não ter muito jeito. Tivemos duas filhas, e um rapaz que faleceu quando ainda era bebé. Pronto, ficamos a morar em Resende. Os meus pais deram-me uma casa ao lado da deles… o meu marido trabalhava na Câmara Municipal e eu estava por casa. Ele não me deixava fazer o trabalho, por isso nunca trabalhei muito. Olhem meninos, nem as lides da casa fazia porque tínhamos empregadas. A única coisa que o meu marido me deixava fazer era cozinhar. Ele só gostava da comida que eu fazia… de resto, o meu trabalho foi cuidar das minhas filhas” afirma. Por vezes, o destino prega-nos partidas que nos obrigam a desenvolver a resiliência emocional, numa ordem superior de grandeza. Assim sucederia com Maria José que, aos trinta e dois anos e num momento de intensa dificuldade, experienciaria a viuvez pela partida do seu marido. “Felizmente, como vivia perto dos meus pais, eles foram ajudando com as crianças. Isso ajudou-me muito. Desde aí, nunca mais pensei em casar novamente, apesar de ter quem me quisesse. Tinha pretendentes, mas eu nunca quis voltar a casar. Depois, após a partida do meu marido, também comecei a acompanhar mais o meu irmão, que era padre, pelas freguesias do nosso concelho, onde ele era colocado. Olhem, acompanhei-o sempre, juntamente com as minhas filhas”, recorda. Para Maria José, a maior alegria da sua vida foi criar as suas filhas. “A melhor coisa que fiz na vida foi criar as minhas filhas, elas são a minha maior alegria. Quando o meu marido morreu, como eram ainda muito pequenas e para que entendessem melhor e não sofressem tanto, expliquei-lhes que tinha vindo um anjo, enviado por Deus Nosso Senhor, para levar o pai. Elas ficaram convencidas e rezavam sempre por ele… elas gostavam muito dele”, afirma, com a emoção ainda bem presente. “Depois do meu marido falecer, ainda pensei em ir viver para Angola. Em tempos, tínhamos ido lá em visita, tínhamos lá família e ainda lá estivemos cerca de dois anos. Enquanto estivemos em Angola, passeávamos e eu ainda cheguei a dar catequese também. Gostei muito de conhecer Angola, de modo que depois de ficar viúva, como dizia, ainda pensei que poderia ir viver para lá. Gostava de poder ajudar aquelas crianças, mas, olhem, acabou por não acontecer”, acrescenta. Ou porque o relembrar de uma memória, sem querer, lhe tivesse arrastado o pensamento para uma outra, ou porque a provocação das perguntas gentilmente colocadas por outros olhos, que brilhavam do outro lado da sala, lhe incrementava o estímulo, Maria José, continua e revive as festas dos seus lugares. “Lembro-me que em Resende havia umas festas, como a Festa da Labareda[6], onde havia música, bailes e brincadeiras, mas eu só ia se os meus pais fossem. Em Lamego, a festa maior era a da Nossa Senhora dos Remédios. Ainda hoje é uma festa muito bonita! Gostava muito de ir, porque também saía de casa e isso não acontecia muitas vezes… mesmo quando saíamos, nunca podíamos ir sozinhas, tínhamos de ser acompanhadas por uma empregada ou duas”, afirma. Como se vê a vida aos 102 anos? Com a propriedade dos seus cento e dois anos, caso raro em Portugal e no mundo, Maria José talvez não o saiba, mas estatisticamente pertence a um restrito grupo de pessoas que representam uma longevidade de elite. Atualmente existirão em Portugal cerca de três mil pessoas com mais de cem anos, não se sabendo quantas efetivamente ultrapassam, num feito ainda mais raro como é o caso de Maria José, os cento e dois anos de idade. Naturalmente, este facto pode gerar grande curiosidade a qualquer pessoa e, talvez ainda mais, aos tão jovens coautores desta bioconversa. De rompante, por detrás de uma multidão nada tímida de pequenos entrevistadores, ecoa a pergunta: “Qual a o segredo para uma vida tão longa?”. Maria José, com um largo sorriso, já habituado à presença da questão, responde: “O segredo da longevidade não lhes sei bem dizer qual é… para mim não é segredo nenhum.” Apesar da aparente ausência de qualquer segredo, ou de qualquer detalhe mais evidente, há revelações que na crença e na fé do seu discurso, nos indicam, por certo, pequenos mistérios de longevidade. “Não tenho pratos favoritos, gosto de coisas simples e saudáveis. Comer nunca foi comigo, mas como sempre a minha sopinha” afirma. “…apesar de gostar bastante de doces”, acrescenta sorridente. Atualmente, além da “sopinha”, sempre presente, e dos “doces”, em dose moderada, Maria José aprecia também outras coisas, algumas das quais, como a televisão, viu nascer longo da sua existência. “No meu tempo livre gosto de ver televisão e gosto muito de ler. Agora já não posso, mas também gostava muito de fazer renda de bilros, fazer croché e também de bordar… olhem, durante a minha vida fiz muita renda. Na altura em que a fazia, tinha muitas encomendas para fora. Cheguei mesmo a ter muitas encomendas nessa altura! As minhas filhas ainda hoje têm toalhas feitas por mim”, afirma. Num último rasgo de privilégio, numa inspiradora ação de exemplar intergeracionalidade com, pelo menos, noventa e dois anos de (des)encontro, Maria José deixa uma homenagem aos seus familiares e um sereno conselho a todos os presentes e, também, a sí caro leitor: “Os meus pais e o meu marido foram as pessoas que marcaram a minha vida, especialmente os meus pais. Além disso, os meus irmãos e toda a família tiveram um impacto importante para mim… em pequena, lembro-me do carinho das pessoas. Eu era muito querida por todos. Na escola também eram todos meus amigos. Em Lamego também era a querida da casa… Até hoje vivo bem, em Ponte de Lima, com a minha filha e um irmão meu. Ao longo da minha vida, sempre fui muito alegre e bem-disposta, ainda hoje sou. Sinto-me feliz com a vida. Para mim, agora, apenas desejo paz e tranquilidade, mas também não quero viver demasiado sossegada… se hoje eu ainda pudesse, ia visitar e fazer companhia aos doentes que tanto precisam de apoio… olhem eu acredito muito em Deus, na ajuda aos outros que mais precisam, no respeito e na importância da família. Esses são valores muito importantes para a vida e, a vocês, digo-vos para se portarem sempre bem, para estudarem, para respeitarem os pais e os mais velhos. O respeito é muito importante. Tratem bem toda a gente”, conclui com o seu sorriso bondoso. Maria José, muito para além da uma vida singular, bafejada pela felicidade de um berço mais dourado e pela rigidez das regras de uma outra convenção social e cultural que se lhe impunha, é, em si mesma, um privilégio material e imaterial para todos quantos a possam conhecer. Tal como o foi para todos nós, equipa do projeto Incríveis Pessoas Comuns, e para todos os meninos e meninas, do quarto ano da EB1 do Centro Escolar de Lanheses, hoje uma Vila Histórica, os mais recentes membros deste projeto, tão docemente orientados pela sua Professora Sílvia e pela Auxiliar, Dona Teresa, que concretizaram a entrevista que serviu de base a esta Bioconversa. Todos juntos, num grande momento de intergeracionalidade, numa sala algo esfriada pelo inverno que lá fora se fazia sentir, Maria José e estes meninos e meninas produziram, por momentos, um calor tão intenso quanto o Sol de um qualquer verão e que, agora, gentilmente partilham consigo. [1] O género Prunus pertence à família Rosaceae e inclui mais de 400 espécies de árvores e arbustos. Este género abrange frutas bem conhecidas como, no caso desta Bioconversa, as cerejas, além das ameixas, pêssegos, nectarinas, damascos e amêndoas. [2] A Casa das Brolhas é uma notável casa senhorial situada em Lamego, construída em 1771. A sua fachada destaca-se pelos ornamentos decorativos esculpidos em granito e pelo imponente portal que exibe o magnífico brasão da família. Este edifício foi classificado em 1975 como de interesse público, refletindo a prosperidade da aristocracia na região de Lamego durante o século XVIII. A Casa das Brolhas teve vários proprietários notáveis ligados à antiga nobreza de Portugal, incluindo Macário de Castro da Fonseca e Sousa, um deputado influente nos primórdios do regime constitucional. O interior da casa é igualmente monumental, com divisões interligadas decoradas com pinturas e tetos estucados, além de uma escadaria central adornada com rodapé de azulejos do século XVIII. O termo “Brolhas” remete para a formação de protuberâncias nos troncos das plantas, que resultam em brotos de ramos, folhas e flores. Pouco tempo após ser cortado, o tronco desenvolve brotos. A palavra “broto” significa gerar ou originar, frequentemente referindo-se ao processo das plantas germinando e lançando novos rebentos. Talvez associado, neste caso, à poda das vinhas que dão origem ao vinho do porto; [3] A Igreja de Almacave, em Lamego, é um monumento histórico com fundação românica, embora tenha sido modificada ao longo dos séculos. Com uma planta retangular, a igreja possui nave, capela-mor, torre sineira, capelas laterais e dependências. A fachada principal apresenta um portal românico com arco apontado e dois pórticos laterais. O interior é ricamente decorado com retábulos de talha dourada e azulejos padrão seiscentista, além de possuir um órgão no coro-alto e pedras decoradas antigas, incluindo estelas epigráficas romanas; [4] Um procurador, neste caso em particular, é um representante legal autorizado a atuar em nome de outra pessoa em situações previamente delineadas num contrato conhecido como procuração. [5] A renda de bilros, originada na Europa no século XV, é um tipo artesanato que consiste no entrelaçar de fios têxteis com a ajuda de pequenos instrumentos de madeira chamados bilros. Manipulados sobre uma almofada, os fios, com a ajuda dos bilros, criam padrões intricados e delicados. Países como a Bélgica, Portugal, Itália e Espanha têm uma longa tradição na utilização desta técnica, cada região possui o seu estilo e padrões típicos. [6] A Festa da Labareda em Resende tem uma história antiga. Iniciou-se no pátio da antiga Câmara Municipal e, posteriormente, foi transferida para o Jardim Municipal. Celebrada nos dias de São Miguel (29 de setembro), o dia dedicado ao padroeiro é também feriado municipal em Resende. As festividades atraem visitantes com música, folclore e competições, refletindo as tradições e o espírito das comunidades locais.
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