Um Novo “Terreirinho” na Serra d’Arga

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Uma bioconversa com Ângela das Neves Esteves Rocha.

Publicado a 06/10/2025

Atualizado a 06/10/2025

A vida de Ângela das Neves Esteves Rocha, iniciada em 1936, na belíssima aldeia de São Lourenço da Montaria, no concelho de Viana do Castelo, é um retrato emocionante da resiliência e da solidariedade que marcaram as várias gerações daquele povo da Serra d’,Arga. Ângela ou Dona Neves, crescida e vivida sempre no seio daquela serra, onde a Nossa Senhora do Minho estende o seu manto protetor, soube encontrar nos trilhos da pastorícia, o caminho da sua própria existência. Desde uma infância passada na lavoura, a uma vida adulta empregue ao cuidado dos seus e de outros, desse percurso retiraria as alegrias, as dores e as memórias que, à semelhança das belas meias, lhe traçam a vida. Enquanto aguarda pela volta do avião, para aviar as saudades, e por esse “terreirinho”, que será o novo Centro de Dia, presenteia-nos com esta sua bioconversa plena de exemplo, de ligação à comunidade, à família e à fé em Deus.


Neves nascida no verão


Lá para as bandas da Montaria, lugar onde, à mais fiel imagem do Garrano, esse selvagem vento norte galga os contornos da Serra d’Arga, nasceu, em 1936, Ângela das Neves Esteves Rocha. Ângela (ou Dona Neves, como é tantas vezes carinhosamente chamada) ...

A vida de Ângela das Neves Esteves Rocha, iniciada em 1936, na belíssima aldeia de São Lourenço da Montaria, no concelho de Viana do Castelo, é um retrato emocionante da resiliência e da solidariedade que marcaram as várias gerações daquele povo da Serra d’,Arga. Ângela ou Dona Neves, crescida e vivida sempre no seio daquela serra, onde a Nossa Senhora do Minho estende o seu manto protetor, soube encontrar nos trilhos da pastorícia, o caminho da sua própria existência. Desde uma infância passada na lavoura, a uma vida adulta empregue ao cuidado dos seus e de outros, desse percurso retiraria as alegrias, as dores e as memórias que, à semelhança das belas meias, lhe traçam a vida. Enquanto aguarda pela volta do avião, para aviar as saudades, e por esse “terreirinho”, que será o novo Centro de Dia, presenteia-nos com esta sua bioconversa plena de exemplo, de ligação à comunidade, à família e à fé em Deus.


Neves nascida no verão


Lá para as bandas da Montaria, lugar onde, à mais fiel imagem do Garrano, esse selvagem vento norte galga os contornos da Serra d’Arga, nasceu, em 1936, Ângela das Neves Esteves Rocha. Ângela (ou Dona Neves, como é tantas vezes carinhosamente chamada) é mulher de uma abastada humildade, que carrega consigo memórias tão preciosas quanto a silhueta das próprias paisagens locais. Nas suas palavras, revela-se o bom carrego da tradição e da ternura, dos cheiros a urze e a pão acabado de cozer, do calor das fogueiras nas noites mais frias, e a grandiosidade, cada vez mais rara e mais saudosa, da alma comunitária. No fim de contas, Ângela é o bravo reflexo da Mulher nascida daquelas terras, tamanhas, de São Lourenço.

Regido pelas fronteiras traçadas pelos caminhos da pastorícia, o mundo de Ângela nunca foi tão grande que não se confundisse com o da própria montanha que acolhe morada à Santa Padroeira do Minho. Mas nem por isso a sua vida foi pequena. Ao tempo de brincar, sobrava o tempo do dever e, agarrada ao valor do trabalho, sempre assim haveria de o ser. Foi dentro dessas fronteiras que cresceu, criou um filho, cuidou dos seus e de outros, atravessando a simplicidade dos dias, sempre empossada dessa partilha diária dos ricos e, sem pecado, invejáveis afetos comunitários. É de lá, do seu cantinho em São Lourenço da Montaria e enquanto aguarda, ansiosa, por uma nova visita dos seus e pelo novo Centro de Dia - “até para a gente também poder falar com mais alguém” - que Ângela, solidária, nos partilha, mais do que a sua vida, uma lição.

“O meu nome é Ângela das Neves Esteves Rocha e nasci a cinco de agosto de 1936. Nasci aqui, nesta casa onde eu estou, chama-se Casa do Martins, no lugar de Espantar, na Freguesia de São Lourenço da Montaria. Foi aqui que cresci e vivi! Esta já era a casa dos meus pais. De irmãos, éramos cinco, mas só já cá estou eu e a minha irmã, que é mais nova quatro anos. As duas mais velhas e o meu irmão, que estava no Brasil, infelizmente já partiram. Naquele tempo, os nossos pais trabalhavam na lavoura. Não eram só eles, todo mundo trabalhava na lavoura. Era o que havia! Eu também comecei muito novinha a trabalhar na lavoura. Também andei na madeira, na floresta, mas isso foi mais tarde, já quando tinha uns dezasseis ou dezassete anos. Antes dessa idade, ia com as vacas, com as ovelhas e com as cabras para o monte. Naquele tempo, a canalha era toda assim! Era o que nos tocava! Eu ainda fui algum tempo à escola primária, mas como, decerto, aprendia mal, só andei lá um ano. Depois, os meus pais tiraram-me para ir para o monte com os bichos. Só o meu irmão, esse, é que andou na escola mais tempo, e esta, a mais nova, também. As outras foram trabalhar mais cedo. É que, naquele tempo, tínhamos de trabalhar cedo porque a fome era bastante. Nós, de pãozinho, até não passávamos miséria, mas de outras coisas já passávamos! É que não se comprava nada! Os meus pais vendiam o leite e os ovos, quase todos, para puderem comprar as leiras, para as termos para cultivar. E olhe, para quê? Para quê, se agora está tudo morto? Mas pronto, naquele tempo, as leiras eram importantes por causa do milho. E, por isso, milhinho e pãozinho nunca nos faltou! O caldo, esse, também era sempre, todos os dias. Lá se botavam ao lume, dentro do pote, os feijões e um bocado de toucinho, botava-se uma acha por baixo e ficava assim. Íamos sachar e, quando vínhamos, tirava-se aquele toucinho, comia-se e logo se ia dormir um sono. Depois, antes de se ir sachar outra vez, comia-se o caldinho, que era aquela água cozida com os feijões. E era o que comíamos! Era assim! Na hora de calor vínhamos a casa, comíamos e, depois, voltávamos a sachar até ao fim do dia. Para a tarde, era um pãozinho, umas azeitonas ou, se as havia, no tempo delas, umas cerejinhas.

Eu, de pequena, ainda brincava qualquer coisa. Ia para o monte com os rapazes e com as raparigas e brincávamos à ‘escondidela’ e à ‘apanhadela’, que eram uns a correr adiante e os outros atrás, a ver quem conseguia apanhar quem. E também dançávamos e cantávamos no monte. Para mim, esses, eram tempos alegres, até mais do que agora. Até tenho aquelas saudades daquele tempo. Passávamos muito mal! Era muito trabalho, era muita miséria, mas também era uma alegria diferente. Não se tinha medo de nada! Nós, canalhinha, íamos por esses montes fora e ninguém tinha medo a ninguém. Ninguém se metia connosco. Andavam os ciganos aí no monte, acampavam aí, e nunca se meteram connosco. Todo mundo se dava bem com toda a gente. Toda a gente era carinhosa uns prós outros. Tudo reparava pelos velhinhos. Olhe que os meus pais até me mandavam levar leite a uma mulherzinha que vivia sozinha. E lá ia eu, com latinha, a levar-lhe aquele bocadinho de leite. Ela era uma pobrinha, não tinha nada. Olhe, uma vez cheguei lá e ela, coitadinha, estava a fazer uns bolinhos, na sertã, pra comer com o leite. Eu, do leite que levei, ainda comi um bocado com ela. Lá repartimos aqueles bolinhos da sertã e o bocadinho de leite. Olhe que nós, naquele tempo, até íamos dormir com os velhinhos! Eu cheguei a dormir, aqui, com uma velhinha que era sozinha, na noite de Natal. Consoei com os meus pais e logo fui dormir com a mulherzinha. Os velhinhos eram todos muito carinhosos uns para os outros. Tudo dava um bocadinho mais prós velhinhos. Agora num dão. Agora, tudo tem fartura! Dantes, por exemplo, não havia ninguém que tivesse um bocadinho de dinheiro. Aqui, em São Lourenço, naquele tempo, só uma casa é que o tinha! A gente até lhes ia pedir dinheiro emprestado, mas levavam uns bons juros por ele! Os meus pais também chegaram a ir pedir-lhes algum para comprarem uns bocados de bouça, que eram de uns meus tios imigrados no Brasil. O meu pai empenhava-se assim. E logo passávamos mal para o podermos poupar. Vendiam-se os ovos, vendia-se o leite, e ficava só algum, para casa, mas pouco”, recorda.


Aquela roupa a fumigar no corpo


Com a inocência da infância deixada para trás, Ângela entraria agora num novo “terreirinho”, feito de escolhas difíceis e de desafios, que não só lhe haveriam de testar a coragem e a resiliência, como também lhe dariam uma nova e muito especial razão para lutar, cuidar e amar.

“A minha juventude foi na floresta, sempre a trabalhar. E nunca tive muitos namoricos porque o meu pai não deixava namorar! Nem deixava ir aos bailes de noite! Naquele tempo era assim! Havia muito respeito! Às vezes, iam-nos chamar a casa para irmos às pândegas da noite. Iam chamar as moças para irem ao baile, senão ninguém vinha. Mas depois havia pais que deixavam e havia outros pais que não deixavam. E aqui sempre houve as festas do Senhor do Socorro, em julho, as de São Brás, em fevereiro, as de São Lourenço, no dez de agosto e as de Santa Bárbara, lá para o vinte e oito. E pronto, eu, aos bailaricos não ia, mas a essas festas ia sempre. Ia à parte religiosa. Ia à missa, quase de madrugada. De inverno, até íamos de noite. Agora não, agora as missas são às dez da manhã. É que, naquele tempo, depois da missa, íamos para casa comer, para depois irmos pró monte com os bichos. E mesmo, apesar de ser dia de festa, durante o dia trabalhávamos sempre! É que os bichos não podiam ficar fechados, na corte, todo o dia! E desse tempo, de quando era mais nova, o que me deixa mais saudades são mesmo esses bailes. Eu só gostava de bailes. Olhe, até íamos subir a serra, lá para perto do São João, juntávamo-nos com as moças de Arga, que até fizeram um terreiro na serra, e dançávamos lá. E até havia aqui um hominho que, aos domingos, levava a concertina às costas para lá! E olha que ir daqui, com a concertina às costas para lá, era muito puxado! Mas isso, dos bailes, era mesmo do que mais gostava e do que mais sinto saudade!”

“Quando estive grávida, esse, foi o tempo que mais chorei! É que eu não casei, mas engravidei. Conheci-o no monte, quando andávamos todos juntos, raparigas e rapazes! Ele, depois, casou com outra! E eu tinha vinte anos quando tive o menino. Eu estava na casa dos meus pais e aqui fiquei! Tive sorte por não me porem fora! É que dantes, quando se engravidava sem casar, os pais punham as filhas fora de casa! Mas o meu pai foi bom comigo. Deixou-mo ter na casa. Já antes de eu, a minha irmã mais velha também teve uma menina, que também tinha nascido aqui em casa. Com outra irmã nossa, também foi assim! Sabe que os meus pais também se viram um bocado perdidos. Também foi um bocado duro para eles, mas mesmo assim nunca me puseram fora de casa. Aceitaram! Eu e a minha irmã, a que teve três filhos, fomos as únicas que não nos casamos. Mas essa, quando veio com o segundo filho, teve mesmo de sair de casa, porque o trato com os meus pais era esse! Se acontecesse, o primeiro tínhamo-lo aqui, o segundo já não! Punham-nos fora e tínhamos de arranjar para onde ir. No caso dela, como a madrinha dela vivia aqui, deu-lhe um cobertinho velho e, depois, ela fez aqui a casa. No meu caso, olhe, foi diferente porque só tive aquele filho, o Daniel, que hoje está bem e até está no Canadá. Mas quando ele tinha um ano de vida, esteve muito doente. Não andava ainda a pé, nem de gatas, nem nada. Ainda era muito pequeninho. E uma mulherzinha, que era aqui vizinha, disse ao pai dele: ‘Olha que a Neves tem o menino a morrer. Ela foi com o menino ao médico e ele tem de levar umas injeções para poder andar!’ E foi ele, o pai dele, quem comprou quase todos os remédios! E ele também não o tinha para comprar. Eram as tias que lho davam, porque ele não tinha dinheiro para nada. Ainda me lembro, eram dezoito escudos cada injeção. A minha irmã mais velha, essa vivia melhor um bocado, porque o noivo dela dava-lhe dinheiro, e também me deu algum para as injeções. Mas logo, pronto, ele deu-lhe os medicamentos quase todos. Não me deu o dinheiro prá mão, mas ia comprar os medicamentos que faziam falta. Por isso, eu não tenho nada que dizer mal, porque no fim de contas ele lá me cuidou do filho. E ele nunca disse que o filho não era dele! Mas, pronto, logo começou a namorar com outra e casou-se.”

“Eu, de trabalhar, trabalhei sempre no mesmo. Trabalhei sempre na lavoura, era o que tínhamos aqui. Trabalhava eu, homens, moços e tudo. Só depois é que começaram a ir para França, começaram a ir por lá, para Lisboa, e assim. Porque antes disso não iam para lado nenhum. Nunca saíam daqui. Depois, mais tarde, fiquei a cuidar dos meus pais até eles partirem. A minha mãe ainda foi nova, tinha 77 anos! E foi, porque dantes era assim: não se ia para o hospital como agora! E nem os carros vinham aqui. É que nem estrada havia! O que vinham, lá pelo monte, eram umas carrinhas, com o peixe, com as sardinhas. Há bocado até não lhe disse, mas, olhe, peixinho para comer, também se comprava. Os nossos pais até compravam sardinhas muitas vezes! E o meu pai, que Deus lhe perdoe, até metia uma postinha de bacalhau e, com o garfo, partia sempre um pedacinho para cada um. Aquilo nem tocava nada para cada um, era uma postinha de bacalhau para sete, mas ele repartia sempre. Até havia o costume, em certas casas daqui, em que o melhor era para os homens e o mais ruinzinho era para as mulheres, mas na nossa casa não. Na nossa casa, o meu pai era justo!”

“De sonhos, olhe, até não me recordo se, quando eu era pequena, sonhava com alguma coisa. Mas sei que nunca pensei em sair daqui. Eu também tinha o filho, estava aqui com os pais e eles tinham-me feito a casa. Depois a minha mãe faleceu e logo fiquei só com o meu pai. E depois, logo casou o meu filho. Não me lembra quando ele casou, mas casou novo! E pronto, a vida foi assim. Hoje, até já tenho dois netos, uma rapariga e um rapaz, e cinco bisnetos, mas estão todos no Canadá!”

“Dos tempos em que eu era mais nova e das coisas que fazia, comparando ao que se faz hoje em dia, olhe, perdeu-se tudo! Por exemplo, dantes malhava-se o milho, nas eiras, com aqueles malhos. Havia desfolhadas! De dia cortava-se o milho e de noite chamavam as moças e havia aquelas desfolhadas. Lá iam os moços encaretados, de noite, a atiçar as moças. Quando topavam uma espiga de milho vermelho, iam logo dar um abraço às moças. Aquilo era tudo a fugir pelo meio da palha. Ai se os nossos pais soubessem!”

“Aprender, aprendi a bordar, aprendi a fazer meias lavradas, que ainda hoje as faço. Aprendi com outras moças no monte, quando íamos com as cabras e as ovelhas, porque dantes tudo se aprendia. Olhe, na feira do pão, ainda fiz mil escudos de meias. Naquele tempo as meias não se vendiam, fazíamo-las para as podermos usar. A tecer, é que nunca aprendi. As minhas irmãs teciam, mas eu, como andava sempre lá pelo monte, não. E também nunca fui muito amiga das tarefas da casa. Mesmo agora, às vezes, até nem como grande coisa, porque nunca fiz de comer. As minhas irmãs é que tratavam da casa, eu só me queria no monte. Eu também queria era ir e andar à minha vontade, porque no monte cantávamos e dançávamos, era outra liberdade. Ai, quando íamos com o gado pró monte, difícil, difícil, era, assim, quando vinha muita chuva e quando as ovelhas arreavam. E nós, todas mulheres, com a chuva a cair no inverno, e com as ovelhas, assim, às costas, derreadas, para não as deixarmos no monte, isso sim era difícil! Ai se me lembro: nós, no monte, com aquela chuva e com aquele frio, todas molhadas! Até arrancávamos aqueles trepos e fazíamos aquelas fogueiras para nos secarmos. Até se via a roupa a fumigar no corpo, de estar a enxugar àquele lume. Isso foi mesmo difícil, ai posso dizer que foi. É por isso que agora estamos todas aleijadas! Foi também de tanta molhadela que levamos, do tanto que passamos. Foi uma vida dura.”

“Depois de o meu filho ir para o Canadá, o meu pai também partiu e fiquei sozinha. Foi um bocado duro ficar sozinha, mas não posso dizer mal. Os vizinhos eram todos meus amigos. Foi como se tivesse perdido alguma coisa. Eu tinha já a netinha e o netinho. A netinha até começou a dormir comigo tinha uns três mezinhos e, logo, também gostava muito de mim. Chorava muito quando, depois, me telefonava do Canadá. Dizia que queria vir para onde a avó. Foi duro deixá-los ir. O filho foi, estava criado, mas os netos, esses, ai custaram-me muito! Eles até estiveram cá no mês de agosto. Olhe, que alegria ter a casa cheia! Nem cabiam todos aqui! Até tiveram de ir para a outra casa, que a minha nora comprou e ajeitou. A minha neta também esteve agora cá, já com uma bisneta que tem treze anos, e com o outro bisneto, que é mais pequeno um bocado, mas já é mocinho, já está a ficar com bigodinho”, diz Ângela com graça.


Contei tudo quanto quis


Com o passar dos anos, uma casa outrora cheia, preenche-se rapidamente de novos silêncios e saudades, daquelas que muito custam. O tempo já não lhe exige correria ou, tão pouco, os animais lhe determinam o frenesim diário. Agora, as horas calmas de Ângela são preenchidas com fé, contemplação, recordações e novas esperanças.

“Eu agora não posso trabalhar, mas no meu tempo livre, faço as meias e vejo a missa todos os dias, às onze horas, em Fátima e, depois, às seis e meia, ouço e rezo o terço na rádio. É com isso que me entretenho! Ouvi dizer que vai abrir um Centro de dia aqui na Montaria e para as pessoas mais velhas vai ser muito bom! Eu não gosto de sair da cama cedo, o meu mal é esse! Mas acho que o Centro de Dia vai ser uma coisa muito boa aqui para a freguesia. Nós tivemos aqui um convívio, íamos de tarde e íamos passear nas carrinhas da Junta de Freguesia. Íamos para lá e íamos pra muita banda. Até faziam a missa e festejávamos os anos lá. Passamos um tempo muito divertido, muito feliz. Gostei muito! E é por isso qu já disse que quero ir para o novo Centro de Dia, quando ele abrir, até também para a gente também poder falar com mais alguém.”

“Na minha vida, as pessoas mais importantes foram os meus pais! A minha mãe era muito minha amiga! Nunca tive problemas com a minha mãe, nunca me ralhou por nada e sempre deu a cara por mim. A minha irmã mais velha, também era como uma mãe para mim e a mais nova era igual. A família e a fé são muito importantes! Sem elas, não somos nada! Olhe, eu pra que rezo? Eu pra que vejo a missa em Fátima? Alguns até dizem que aquilo é um comércio e que ‘não sei quê não sei que mais’, mas eu tenho fé. Até pode ser que o seja, mas eu mantenho a minha fé.”

“Hoje em dia, o que eu mais gosto de comer é a sopinha! Era aquilo que nós comíamos antes. E até nem faço muito de comer. Carne não como, porque se me enrola na boca. Até faço é uma canjinha de galinha. Como duas tigelinhas. Uma delas com um pouco de trigo e logo como outra. Pronto, assim faço a refeição. Ai, da sopinha eu gosto muito!”

“Eu, os conselhos que dou às crianças é que sejam bem-educadas. É que agora, a canalha, não é nada como era dantes. A canalha, agora, não tem aquele respeito, mas também o pai nem lhe pode pôr a mão! Deixam fazer o que se quer. Às vezes até se vê a canalha a tratar mal os pais. Também, uma sapatadinha não lhes fazia mal nenhum, acho eu! Olhe, eu só dei uma vez uma palmada ao meu filho e porque me fugiu para o rio. Era ‘piqueno’, estava com outros e eu não sabia dele! Tive medo que se afogasse. Mas, pronto, o que lhes digo é que se portem bem e que tenham respeito pelos outros e pelos mais velhos.”

“E eu até digo que se estava melhor antigamente! Não havia ladrões como agora há, que até nos entram pelas portas. Nem as portas de casa fechávamos, nem tínhamos chaves em banda nenhuma e não havia nada das ‘desgrácias’ que há agora. Vivia-se em comunidade. A canalha andava à liberdade. Hoje há liberdade, mas não há respeito. Há mais liberdade do que antigamente, até vão para onde querem, mas o que não há é aquele respeito que havia dantes. Ai, nós, se não nos portássemos bem, davam-nos com a sôga do gado no traseiro! Eu ainda apanhei algumas coças que foram justas. Até me lembro de uma que foi assim: Eu gostava muito dos animais, como ainda hoje gosto, e queria deitar uma galinha e não me deixavam! Vendíamos os ovos todos e não os tínhamos para deitar. Então, fui ali a uma vizinha, vi uns ovos num buraco da parede, tirei-lhos e deitei-os na minha galinha. A mulherzinha, ao meio-dia, foi buscar os ovos para comer e não os topou lá. Ora, a minha mãe sabia que não tínhamos ovos, viu a nossa galinha deitada e também sabia que, à vizinha, lhe faltavam os ovos. Ora quem haveria de ter sido? Tinha sido eu! Naquele dia levei uma coça boa, mas mereci-a bem! Dizem que a canalha pega por uma agulha e eu assim era, capaz de continuar a fazer ‘cousas’ e asneiras assim. Fez-me muito bem aquela coça.”

“Olhe, nós não tínhamos nada! Não tínhamos um brinquedo sequer. Não nos os compravam. Eu se apanhasse uma caixinha de papel, vazia, ficava toda contente. Para mim era um brinquedo! Ainda me lembro de outra história: havia uma mulher, mais velha do que eu, mas muito minha amiga. Íamos as duas com as vacas prás leiras, prá piedade, e juntávamo-nos lá. Eu gostava muito dela, mas um dia, ela adoeceu. Eu queria ir vê-la, mas tinha medo de ir à casa dela sozinha. Então fui, mas pus-me atrás de uma vinha, mais ao longe. Entretanto viram-me lá e chamaram-me pra ir ver a minha amiga. Olhe, deram-me umas caixinhas de papel, ai que contente que eu vim de lá, com aquelas caixinhas para brincar. Nós não tínhamos nada, nem um brinquedo havia sequer e hoje à muita fartura. Eu vejo pelos nossos: tudo lhes agrada, tudo lhes dão. Para nós, dantes, não havia disto! Mas pronto, a vida é assim e, assim, foi a minha vida. Olhando para trás, a minha vida até foi uma vida feliz! Passei o que passei, mas foi uma vida feliz. Sinto-me muito bem com a vida que tive até agora! Acho que contei tudo quanto quis,” conclui.

É assim, com uma frase, tão cheia de significado, apontada ao silêncio e a novos reencontros, que Ângela encerra esta sua Bioconversa. Ela que é um verdadeiro espelho daquela geração que, apoiada nos laços e na entreajuda comunitária, soube viver com pouco e, ainda assim, contribuir com muito para o pulsar do mundo que hoje sentimos. Por entre as memórias da “escondidela”, das desfolhadas, da roupa a enxugar no corpo ou da acha que alimenta o fogo, deixa-nos uma lição de humildade e gratidão que ecoa, serena, desde essas montanhas, desde esse magnífico coração do Alto-Minho.

Referências

  1. sacharRevolver a terra à volta das plantas cultivadas, geralmente com uma enxada, ou sacho, para arejar o solo, eliminar ervas daninhas e estimular o crescimento do cultivo;
  2. pândegasFesta alegre, divertida ou animada;
  3. hominhoHomenzinho;
  4. encaretadosCom caretos, mascarados;
  5. lavradasAs meias lavradas são peças de vestuário tradicionais portuguesas, especialmente associadas ao traje típico do Minho;
  6. feira do pãoRefere-se à Feirinha da Montaria, uma celebração mensal da autenticidade e da tradição local, realizada no primeiro domingo de cada mês, no Largo do Souto, naquela localidade;
  7. desgráciasDesgraças;
  8. sôgaUma tipologia de cinta ou corda grossa, normalmente em couro, utilizada para segurar os animais ou gado, no contexto de trabalho agrícolas;
  9. galinhaColocar uma galinha a ‘chocar’ ou encubar os ovos;
  10. topouEncontrou;
  11. cousasCoisas;

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