Uma bioconversa com Maria de Lourdes Ferreira de Oliveira.
Publicado a 12/10/2025
Atualizado a 12/10/2025
Maria de Lourdes Ferreira de Oliveira, mais conhecida como Dona Neves, nasceu junto da ponte do Arquinho, em Santa Maria de Arcozelo, no concelho de Ponte de Lima, a onze de janeiro de 1930. Depois de uma infância humilde, dividida entre a escola, o trabalho na prospeção do minério das Pedras Finas e dos brinquedos feitos à sua mão, mudar-se-ia para Santa Marta de Portuzelo, onde trabalhou como criada de servir, e pouco tempo mais tarde para a Ribeira de Viana, prosseguindo essa anunciada carreira de serviço. Casou nova e, com a dificuldade por companhia, fez vingar seis filhos, no coração da mais pura tradição vianense. Cidadã de mérito, reconhecida por tantos, a sua história confunde-se com a memória da própria princesa do lima.
A história de Maria de Lourdes Ferreira de Oliveira teve início junto à Ponte do Arquinho, no rio Labruja, e segue a desaguar, cheia de vida, junto à foz do rio Lima. Dona Neves, como é tantas vezes reconhecida, é uma limiana que se tornou parte da alma vianense e um verdadeiro retrato vivo do espírito feminino minhoto. No seu nome, herdado da madrinha, carrega a cultura singular das mulheres dessas...
Maria de Lourdes Ferreira de Oliveira, mais conhecida como Dona Neves, nasceu junto da ponte do Arquinho, em Santa Maria de Arcozelo, no concelho de Ponte de Lima, a onze de janeiro de 1930. Depois de uma infância humilde, dividida entre a escola, o trabalho na prospeção do minério das Pedras Finas e dos brinquedos feitos à sua mão, mudar-se-ia para Santa Marta de Portuzelo, onde trabalhou como criada de servir, e pouco tempo mais tarde para a Ribeira de Viana, prosseguindo essa anunciada carreira de serviço. Casou nova e, com a dificuldade por companhia, fez vingar seis filhos, no coração da mais pura tradição vianense. Cidadã de mérito, reconhecida por tantos, a sua história confunde-se com a memória da própria princesa do lima.
A história de Maria de Lourdes Ferreira de Oliveira teve início junto à Ponte do Arquinho, no rio Labruja, e segue a desaguar, cheia de vida, junto à foz do rio Lima. Dona Neves, como é tantas vezes reconhecida, é uma limiana que se tornou parte da alma vianense e um verdadeiro retrato vivo do espírito feminino minhoto. No seu nome, herdado da madrinha, carrega a cultura singular das mulheres dessas terras da Ribeira Lima, descendentes do sangue real de Ana do Castelo.
Nascida, segundo a vontade de Deus, em Santa Maria de Arcozelo, no concelho de Ponte de Lima, cedo desceria o rio do “esquecimento”, envolvida pelo murmúrio das águas e embalada pelo sonho, até às portas do Atlântico. Para trás, ficaria um humilde retrato da infância: a paz no colo dos avós, a velhinha escola primária, as brincadeiras inventadas com bugalhos e com as espigas de milho e o trabalho precoce, entre as terras raras das Pedras Finas. À sua espera, na Ribeira de Viana, entre o pulsar da tradição piscatória, o casario típico e a fé pétrea na Nossa Senhora d’Agonia, encontraria o resto da vida. Nem sempre os seus tempos lhe chegariam fáceis. A nortada, por vezes demasiado constante e persistente, trazer-lhe-ia dor, mas também lhe elevaria o espírito, a coragem e a resiliência, até a um limiar digno de estrela!
Hoje, com quase noventa e seis anos, através do grafismo das suas histórias, do carinho das suas palavras e do som da sua chieira, concentrado no bater do tacão das chinelinhas, Dona Neves carrega, a plena voz, a essência de toda uma cidade.
“O meu nome é Maria de Lourdes Ferreira de Oliveira e nasci a onze do dois de 1930. Portanto, agora, tenho noventa e cinco e meio e já vou a caminhar para os noventa e seis! Eu nasci em Santa Maria de Arcozelo, no concelho de Ponte de Lima. Os meus pais eram de lá, mas depois já vim fazer os meus onze anos a Santa Marta de Portuzelo, no concelho de Viana. Portanto até antes dessa idade vivi sempre em Ponte de Lima.”
“Os meus pais eram pobrezinhos e casaram muito novos. Eu fui a primeira filha e, de seis irmãos, sou eu a mais velha. Os meus pais não tinham muitas posses e o meu pai era um bocadinho mauzinho para a minha mãe, de maneira que fui criada pouco tempo com eles. Um dia, devia ter eu praí uns cinco aninhos ou qualquer coisa parecida, apareci em casa dos meus avós, que não moravam longe, e eles agasalharam-me. Fui eu mesma que quis ir para os meus avós! Ainda me lembro que, nesse dia, chovia bem! A casa dos meus avós até era a primeira casa para quem ia da Ponte do Arquinho para a frente. Tinha ali um afluente do Rio Lima e tinha uma ponte, a gente até ia lavar a roupa ali ao Arquinho. E pronto, fui criadinha ali, no meio de doze tios, seis rapazes e seis raparigas. Uma dessas tias, que era a minha madrinha, chamava-se ‘Neves’ e foi por isso que me ‘cristaram’, também, de ‘Neves’.”
“Mais tarde, já na idade de ir para a escolinha, foram os meus avós quem me meteu lá. Andei numa escola que ficava em Faldejães, acho que era num lugar chamado de Sabadão. Fiz, lá, o exame da terceira e depois, também, o da quarta classe. O da quarta, naquele tempo, só se podia fazer com onze anos já feitos, mas eu, para não perder mais um ano de escola e como estava preparada, fiz o exame com dez. Naquele tempo, a minha falecida avó ainda teve de pagar onze escudos para eu poder fazer o exame! E olhem que onze escudos, naquela altura, era muito dinheiro! Era no tempo em que o escudo dava para alguma coisinha, agora o euro não dá para nada.”
“Para brincar sempre tinha algum tempo, mas nunca cheguei a ter uma bonequinha. Não havia dinheiro nem havia quem nos as desse, fazíamo-las nós. Lá íamos para o meio dos campos, íamos ao cabelinho das espigas de milho, àquele que estivesse mais sequinho. Depois apanhávamos aqueles bugalhinhos dos carvalhos, uns pequeninos redonditos e outros maiorzinhos, e, como tínhamos uma tecedeira que morava lá perto e que nos dava uns trapinhos, juntávamos tudo e assim fazíamos as nossas bonequinhas. A gente para fazer as nossas brincadeiras era assim! Olhem, também pegávamos nuns pauzinhos pequeninhos e espetávamos no chão para fazer as casotinhas. Com alguns dos bugalhinhos, fazíamos os animais. Com aqueles bugalhos maiorzinhos, cortávamos assim a cabecinha direitinha e ficava aquela tampazinha. Na parte de baixo, raspávamos o miolinho e, depois, pegávamos nuns pauzinhos, assim pequeninos, e punhamos três pauzinhos, no fundo, para fazermos um potinho. Com a parte de cima fazíamos um cestinho. Depois, com os bugalhinhos pequeninhos fazíamos um triangulozinho e jogávamos. Também fazíamos umas almofadinhas de trapos, que enchíamos de areia para serem pesadinhas e jogávamos às almofadinhas. E eram assim as nossas brincadeiras, mas não havia muito tempo para elas porque se começava muito cedo a trabalhar! Eu, quando comecei, ainda não tinha os onze anos. Quando eram férias da escola, já ia com uma das minhas tias para as serras, lá para cima, para as pedras finas, para o minério. Lá andava eu, no meio da água, com uns alguidares de barro, a lavar a terra para o minério aparecer. Andávamos nós com aqueles alguidares, a lavar a terra, que ia saindo lentamente, e depois aparecia o minério no fundo. Às vezes até nem aparecia nada, porque não o havia. Depois, fiz os meus onze anos já a trabalhar como criada de servir, numa Quinta em Santa Marta de Portuzelo. Era uma Quinta onde moravam uns professores e o meu trabalho era tomar conta das crianças e também servia para os recados! Outra das tarefas que eu tinha, nessa altura, era a de levar comida todos os dias, a um desses professores, até Perre! Aquilo era muito cansativo! Ia desde Santa Marta, atravessava a estrada que ia para Ponte de Lima, entrava naquela estrada compridona que segue por ali fora, e ia quase até ao fim da freguesia de Perre. Era assim! Eu até não sei precisar o tempo em que estive nessa Quinta, mas foi pouco tempo. Uma vez eles queriam que eu viesse a Viana comprar cebolas, mas eu, pequenita, nem sabia sequer onde ficava Viana! Eles lá explicaram que tinha de atravessar a linha do comboio e ‘não sei mais o quê’, mas no fim daquelas explicações todas, eu, como tinha medo, não fui! Ai, aí passei um mau bocado! Depois, num outro dia, a Professora esqueceu-se e deixou o armário da broa aberto. Eu vi e tirei de lá uma pontinha de broa. Quando ela chegou a casa, bateu-me logo! E isso só por eu ter comido aquele bocadinho de broa de milho, sem ordem! É que, naquele tempo, eu ia e vinha sem comer! E a canalha, naquele tempo, andava assim, sempre com fome. Olhem, a minha avó dava-me aquele bocadinho de pão, que era um bocadinho de broa de milho, e era assim. Também havia pão de farinha de trigo, mas era só aos domingos. À semana era aquele bocado de broazinha. Olhem, dessa vez, quando a Professora me bateu, fugi no dia seguinte! Fiz a minha trouxinha e fui a pé para Ponte de Lima. Quando lá cheguei, a minha avó ficou toda atrapalhada. Dizia ela: ‘Quem te trouxe? Vieste como?’. Eu respondi-lhe: ‘Vim a pé, sozinha!’. Eu já estava habituada a andar a pé sozinha.”
“E foi assim! Eu vim para Santa Marta e de, Santa Marta, fui outra vez para Ponte de Lima. Depois, uma minha tia, que morava aqui no Largo São Domingos, contactou a minha avó e disse-lhe: ‘Manda para cá a rapariga que eu tomo conta dela e arranjo-lhe aqui trabalho’. E assim foi! Vim para Viana com os meus onze ou doze anos e essa minha tia arranjou-me logo trabalho na casa em frente, no falecido Zé da Veiga. Estive lá a trabalhar uns três ou quatro anitos. Fazia tudo, era criada de servir, e ganhava cinquenta escudos por mês. Depois, mais tarde, quando comecei a namorar, pedi aos patrões que me dessem mais qualquer coisinha, mas eles não puderam dar. Até que tive uma senhora, que morava aqui na Ribeira, na rua Padre Daniel Machado, que me dava setenta e cinco escudos e fui trabalhar para ela. Já ganhava mais um bocadinho! Lembro-me bem que o marido dela era o chefe dos pilotos da barra e ela, pronto, era senhora de casa.”
“Eu, na minha juventude, era muito namoradeira! Tinha muitos pretendentes! Eu chegava a porta da rua e tinha um em cada esquina! Até já nem saía de casa! A gente trabalhava, começava-se logo de manhãzinha cedo, e só ao domingo de tarde é que tínhamos aquele bocadinho! Eu era pequenina, mas era muito jeitosinha! De maneira que depois, deveria ter eu dezassete ou dezoito anos, comecei a namorar com um pescador, que veio a ser o meu marido. Eu até costumava dizer, por brincadeira, que vim de Ponte de Lima, numa cheia daquelas antigas, pelo rio abaixo. E olhem que eu até já fui entrevistada por causa disso! Uma vez, já estava eu viúva, veio um entrevistador da televisão. Foi numa altura em que eu tive de ir trajada à moda da nossa Ribeira. Diz-me assim o entrevistador: ‘Ó Dona Neves, eu venho informado de umas coisinhas sobre a senhora. A senhora vai-me dizer como é que veio parar à Ribeira de Viana do Castelo. Como é que conseguiu vir numa cheia?’. E eu respondi-lhe: ‘Olhem consegui e vim! Vim rente à beirada, amarrada os salgueiros e aos amieiros, com a cabeça de fora para não me afogar. Cheguei ali, ao cais dos pilotos, o meu marido estava ali a pescar, engatou-me num anzol e apanhou-me’. Diz assim o entrevistador: ‘Então, para a Senhora ter engravidado tantas vezes, vai-me dizer qual era o isco do anzol?’. E eu disse: ‘Era a minhoca!’, recorda com uma gargalhada.”
Uma vez iniciado o casamento, Dona Neves entregar-se-ia à vida adulta com a coragem e determinação, que trouxera, treinada da adolescência. Juntando o silêncio ao sacrifício, tantas vezes invisível, criou com propósito e amor uma bonita família e, sem querer, a admiração de todo um município.
“O meu marido chamava-se Luís. Era Luís Machado Ferreira, mais conhecido por ‘Luis Chato’, isso porque a mãe dele era aqui conhecida por ‘Tia Maria Chata’. Nós ainda namoramos praí um aninho ou um ano e meio, talvez. Depois, entreguei-me e engravidei. Ainda fomos viver juntos antes do casamento porque uma das minhas cunhadas, falou com a minha sogra e arranjou com que eu fosse viver com ele antes do casamento. Infelizmente, ainda antes do casamento, que até já estava com data marcada, abortei. O bebezinho, com seis mesinhos e meio, ainda durou da uma hora da madrugada até às dez da manhã e ainda foi batizado na igreja. Foi um momento muito triste!”
“Depois casamos. Os meus pais ainda vieram ao meu casamento, mas infelizmente não fui muito feliz. O meu marido era um bocado difícil e, por exemplo, nessa noite do casamento tivemos um problema e não havia luz. Acho que aquilo aconteceu porque as minhas cunhadas tinham ligado um rádio e havia lá um fuzívelzinho branco que tinha de levar uns fios e ‘não sei quê não sei que mais’ e ficamos sem luz. Então a minha sogra foi ali aos serviços, que também eram ali onde estão as águas, chamar o senhor que estava de piquete e senhor lá veio ajeitar o quadro elétrico. O meu marido lá se foi deitar e eu fiquei ali, com a minha sogra e com o senhor que estava a arranjar o quadro. Depois, quando me vou meter na cama, o meu marido aborreceu-se comigo porque não gostou que eu tivesse ido para a cama mais tarde do que ele. De maneira que, pronto, dali para a frente, eu fui uma escravinha de trabalho.”
“Antes do meu marido ir para o alto-mar, como tinha a licença do comandante da Capitania, ele andava aqui na costa, ao camarão com uma rede que até fui eu quem a montou. Isso foi assim: Houve um dia em que ele esteve em Lisboa, na oncologia, por causa de um problema que teve na boca, e viu lá uma rede qualquer que os pescadores usavam. Trouxe de lá a ideia dessa rede e fui eu própria quem a conseguiu montar, tal e qual como ele a queria e essa coisa toda! E assim, antes de ele ir para o alto mar, ia com aquela rede, aqui pela costa, a apanhar o camarão. Eu ia muitas vezes com ele e, depois, quando os filhos começaram a crescer, passaram a ir eles. Uma vez ia um, outra vez ia outro. Depois, eu tinha de vir para casa e escolher aquele argacinho todo pequeninho. Estendia-o todo numa mesa, que tinha na cozinha grande, e escolhia aquilo tudo. Tratava de pôr aquele camarãozinho todo pronto. Tinha de separar maior do mais pequenino. Passei noites e noites sem ir à cama para escolher aquele argacinho todo! E ainda tinha de ir buscar água à fonte, ao castelo, para lavar aquilo tudo, prepará-lo e cozê-lo. Olhem, nem esgotos tínhamos! Tinha de vir despejar os baldes à rua! Era uma tristeza naquele tempo! Depois, às sete da manhã, já tinha a bater à porta, alguém do Hotel de Santa Luzia ou do Lumia Parque, do Martins, para levarem o camarão. Era assim! Aquele maiorzinho, um dia era para um outro dia era para o outro. Aquele mais pequenino era vendido, nos pirinhos das chávenas do café, no mercado. E de maneira que, olhem, assim foi passando a vida! Quando o meu marido era vivo eu fazia o trabalho de casa, lavava as roupas, tratava dos filhos e ajudava-o no trabalho dele. Depois de o meu marido falecer não trabalhei mais nisso. Tratava do resto, dos filhos que ainda estavam solteiros e andava assim, feita rendilheira, nos passeios.”
“Eu engravidei vinte e uma vezes, mas só mandei batizar nove e desses nove só criei seis! O último que perdi já tinha quatro mezinhos e meio. E pronto, faleceu-me o primeiro, faleceu-me o segundo, que nasceu sem o tempo, e depois faleceu-me uma menina, com um aninho e um mês. Essa menina partiu precisamente no dia de São José. Lembro-me que eu tinha uma à mesa da comunhão solene e a outra no caixão, em casa. Foi outra passagem muito triste. Sabe que, naquele tempo, tínhamos muitos ‘Josés de Monserrate’. Para nós, era tudo ‘Zés de Monserrate’. E os ‘Zés de Monserrate’, quando nascia uma criança naquele Dia de São Josézinho, no 19 de março, ofereciam o enxoval ao bebé que nascesse. Naquele ano não nasceu bebé nenhum, mas faleceu a minha menina e eles ofereceram-me o funeral. Foram seiscentos escudos, naquele tempo! De maneira que pronto, só criei seis, mas desses seis, já tenho dezassete netos. Olhem, ainda criei a minha neta mais velha até aos dezoito anos. E também já tenho vinte e dois bisnetos nascidos. O vinte e três também já vem a caminho. Olhem que vinte e três bisnetos, não é para toda a gente!”
“Festas, naquele tempo, havia as da Senhora d’Agonia, mas olhem que a primeira Senhora a ir ao mar não foi a Senhora d’Agonia, foi a nossa Senhora que veio de Fátima. Eu lembro-me bem, ainda era solteira! Fomos esperar a Nossa Senhora de Fátima ao outro lado, ao Cais Novo. Depois a Nossa Senhora veio de carro e a gente, aqui da Ribeira, foi fazer a espera. Lembro-me que a ponte tremeu naquela altura. Aquilo foi assim: conforme passámos, a acompanhar a Nossa Senhora, a ponte tremeu mesmo! É verdade! E de maneira que a Nossa Senhora de Fátima é que foi a primeira a ir ao mar. Depois, só dali para a frente, é que começou a ir a Nossa Senhora d’Agonia. E pronto, as festas daqui eram essas, as da Senhora d’Agonia! Quando eu era canalha, quando eu ainda era criadinha de servir, na minha juventude, ainda ia às Feiras Novas e às da Senhora da Boa Morte, em Ponte de Lima. Ia às de Nossa Senhora da Saúde, sempre atrás da minha tia. Ia às de Santa Marinha. Olhem, nesse tempo, corria as festas todas. De maneira que, pronto, havia essas festinhas da aldeia. Também íamos à Senhora das Boas Novas, ali para os lados de Mazarefes, mas isso já era quando os nossos maridos iam para o mar. Era assim! Lá íamos nós, rezar à igreja para que nossa Senhora ajudasse os nossos maridos na ida e na vinda. Mas a Senhora d’Agonia é que é a protetora dos nossos pescadores. Olhem, eu e as minhas filhas andamos, noites inteiras, a trabalhar nos tapetes para as festas da Senhora d’Agonia! Ai, ainda angariei muito dinheirinho nos cantinhos daqui da rua Frei Bartolomeu dos Mártires. Olhem, punha-me ali, com o cestinho e tinha muitas pessoas conhecidas que sempre davam alguma coisinha. Até tinha imigrantes que me conheciam, porque na altura, já depois do meu marido falecer, o meu genro, o marido da Fátima, era da rádio Geice e fazia aqueles programas em que a gente ganhava muitos prémios. Ganhava quem tinha a sorte, claro! E eu também comunicava para lá. Por isso, havia muitos emigrantes que já me conheciam e deixavam sempre alguma coisa para as festas da Senhora d’Agonia.”
“Mas, olhem que, durante trinta anos nunca vi nada, nem nunca conheci nada, a não ser Ponte de Lima e aqui na zona de Viana. Só três anos depois do meu marido ter falecido é que eu passei a ter uma vida diferente. Ele partiu com cinquenta e quatro anos acabados de fazer, eu ainda não tinha os meus cinquenta e três. Olhem, ele fez anos no dia vinte e três de dezembro e faleceu no dia vinte e quatro, na hora da ceia de Natal. Depois, só passados três anos é que a minha vida mudou um bocado. E aquilo foi assim: Eu tinha uma senhora amiga que era daqui da Ribeira, que tinha vivido muitos anos em Peniche e que frequentava muito a minha casa. Era uma pessoa muito minha amiga e ia sempre, todos os anos, no cortejo da Senhora d’Agonia, sentadinha no carro, a fazer meia. Um dia, perto das festas, diz-me ela assim: ‘Este ano vais comigo no cortejo da Senhora d’Agonia’. Respondi-lhe eu: ‘Ai, não vou nada Tia Mena. Parece mal!’. Diz ela: ‘O quê? Parece mal?! Nunca foste ver nada, nunca foste a lado nenhum. Tiveste uma vida de cruz durante trinta anos e parece mal?! Pois, tem a certeza que este ano tens de ir comigo. Tens mesmo de ir comigo!’. De maneira que, tanto me entusiasmou e até me emprestou as coisas, que lá fui. Naquela altura, íamos com aquilo que tínhamos e até era ela quem me emprestava o avental. De maneira que pronto, comecei aí no cortejo da Senhora d’Agonia. Depois de ela ter falecido, a filha dela mandou-me três aventais. A Tia Mena era uma pessoa muito minha amiga e, por sinal, fui eu que fui dar com ela na última hora, dentro de casa. Ela era mesmo muito minha amiga! Um dia, também houve um senhor, que morava ali à beira do futebol, e que me disse: ‘Vamos fazer um passeio a tal sítio. Vamos à Senhora de Fátima, vamos a Lisboa ao Santinho Padre Cruz, vamos ao irmãozinho Doutor Sousa Martins. Queres vir connosco?” Eu que nunca tinha visto nada, respondia sempre: ‘Vamos!’. E de maneira que comecei a andar e comecei a ver alguma coisinha. Olhem, vi muitas coisas que nunca tinha visto e até que nunca na vida pensei ver! E pronto, depois também me começaram a entusiasmar para ir nas marchas e até fui cantora aqui nas nossas da Ribeira. E também já cheguei a fazer teatro no Sá de Miranda e na Praça da República e também cheguei a fazer aqui, nos claustros do Convento de São Domingos, quando foi dos 500 anos de Frei Bartolomeu dos Mártires. De maneira que depois, mais tarde, por gostar de cantar e participar nessas coisas, até dei algumas reportagens e até fomos à TVI. Sempre fui muito acarinhada por toda a gente e até pelo pessoal todo da Câmara Municipal. E até houve um dia, em 2020, em que eu estava aqui no café, em São Domingos, e vi aquela mão na porta a chamar-me. Fui à porta, cumprimentei as pessoas e perguntaram-me assim: ‘Sabe o que vimos fazer?’. E eu respondi: ‘Não sei, os senhores é que me vão dizer!’ Dizem-me eles: ‘Vimos dizer-lhe que você, no dia tal, às tantas horas, tem de estar no Teatro Sá de Miranda. Você vai ser condecorada como cidadã de mérito!’. Respondo eu: ‘Senhor Presidente da Câmara, porquê eu?’ Diz ele: ‘Porque você merece!’. Olhem, fiquei ali, sem palavras! A minha Fátima é quem tem a medalha, o diploma e tem as fotografias. Tem isso tudo guardado. Fiquei muito feliz!”
“E foi assim a minha vida, entre altos e baixos, muito complicada, sofri muito. Em trinta anos de casamento, nunca tive voz ativa e nem respondia ao meu marido! Eu também fui sempre muito medrosa. Olhem, foi uma vida de sofrimento. Às vezes passava noites muito más, muito más mesmo! De manhã, lá ia fazer o cafezinho para os filhos, para o meu marido e dali ia levá-lo à cama. O meu marido, desde que casou comigo, nunca deu um banho sozinho. Era uma bacia grande e um jarro com água fria, no quarto, punha-lhe a roupinha toda em cima da cama, desde as meias ao resto, para ele vestir, tudo prontinho. Quando ele chegava do mar, era eu que lhe dava o banho, todos os dias, como quem dá a um bebé, para ele não fazer chafurdices e para depois eu ter de limpar. É que durante esse tempo não tínhamos uma casa de banho em casa, o que tínhamos era uma fossazinha no quintal para fazer as necessidades. Depois é que vinham, de noite, os carreteiros da areosa, mas só mesmo depois da meia-noite é que passavam da guarda para cá, com os carros, para virem limpar as fossas. De maneira que passei esses trinta anos assim. Eu sempre o acarinhei, mas foi uma vida de sofrimento. Ora bem, eu até fiz uns versos sobre isso. Nem sei deles porque eu nunca ficava com as cópias. O título que eu tinha posto aos versos era ‘Vida de sofrimento’. O princípio era assim:
‘Sem carinho de meus pais
que eram muito pobrezinhos,
Criaram-me os meus avós
com muitos poucos miminhos.
Caminhei pela vida fora
sempre, sempre sem parar,
Descalça, cheia de frio,
quantas vezes a chorar.
Uma vida de solidão
até por fim o encontrar.
Casei e fiz-me mulher,
mas ninguém me soube amar…’
E era assim. Do princípio ainda sou capaz de saber alguma coisinha, agora, o resto, daqui para a frente, é que já não me lembro”, confessa.
Depois de um percurso marcado pelo trabalho e pela abnegação, a vida que tanto lhe havia subtraído oferecer-lhe-ia, agora, novos horizontes e, com eles, a liberdade de viver ao seu próprio ritmo. Hoje, de Jornal de Notícias na mão, a sua alegria pelo cantar e o gosto pelo convívio no café, a sua fé em Deus e a “chieira” na chinela, o seu conselho sábio e o sorriso acolhedor, pautam-lhe os dias, assim como os de outros tantos que, com ela, tem nas ruas da ribeira a sorte do seu reencontro.
“E pronto, agora nos meus tempos livres gosto de ouvir rádio. Também gosto de estar no cafezinho a ver as notícias na televisão. Gosto muito de ver a CM, porque traz as notícias todas que se passam e eu gosto de saber as notícias. Olhem, compro o jornalzinho de notícias todos os dias, desde que foi o assalto ao paquete de Santa Maria, ainda o meu marido era vivo. O Jornal de Notícias, esse, é todos os dias. Até já dei à Ana Peixoto, que também chegou a trabalhar na Rádio Geice, uma reportagem onde estou, na papelaria, com o jornal na mão. E ela lá pôs aquela reportagem e aquelas coisas todas. Também sempre gostei muito de escrever e de cantar. A minha alegria era cantar. Eu gostava tanto! Eu fazia tudo a cantar: cozinhava a cantar, limpava o pó a cantar, fazia tudo a cantar. Eu até cantava uma música que era assim:
‘Se não te esqueceste
do amor que me dedicaste,
o que escreveste
nas cartas que me mandaste.
Esquece o passado
e volta para meu lado
porque já estás perdoado
de tudo o que me chamaste
Se é contrafeito
não voltes, toma cautela
porque eu aceito
que vivas antes com ela
Pois podes crer,
que antes prefiro morrer
do que contigo viver
sabendo que gostas dela
Só o que te peço
É uma recordação
Se é que mereço
um pouco de compaixão
Deixa ficar
o teu retrato comigo
para eu julgar
que ainda vivo contigo.’
“E é do que gosto. De comer também gosto. Gosto de comer qualquer coisa, não escolho. Para mim serve qualquer coisa. Agora, até estou numa fase em que como poucochinho. E, pronto, assim vou passando. Também acredito muito em Deus. Ai, se acredito! Já acreditava desde nova e agora ainda acredito mais! E acredito pelo seguinte: Eu num dia de anos, ofereceram-me na papelaria onde gasto o jornal, um livro em que o título é: ‘Segredos de Fátima’. E olhem, isto tudo que se está a dar, estes incêndios, estes acidentes, estes terramotos, tudo isto, eu já li isso tudo nesse livro. O pior é o que vem do meio do livro para a frente. Eu contava aquilo que li nesse livro às pessoas e elas não se acreditavam em mim, ainda gozavam comigo. Mas agora está-se a ver tudo. Por isso, se eu ainda cá estou, tenho de agradecer a Deus, todos os dias. Olhem, eu chego à noite, rezo o meu tercinho e agradeço a Deus o dia que tive, tanto o que tive de bom como o que tive de mau. Rezo sempre assim: ‘Obrigada meu Jesus pelo santo dia que me destes’. De manhã, ao sair a porta, venho a dizer assim: ‘Da minha porta vou sair, para a minha vida governar. Quantos anjos me acompanham, como de passos eu vou dar. Deus comigo, eu com Deus. Ele à frente e eu atrás, para que Nossa Senhora me defenda das astúcias de Satanás’. E acho que o Senhor me atende, porque senão, àquilo que tenho passado e ao que passei, já cá não andava. É que já estive a pontos de ir para o pavilhão, para viver ou morrer! Ainda o meu marido era vivo quando isso aconteceu. Eu devia ter praí os meus quarenta ou quarenta dois anos. O operador diz assim à médica e às enfermeiras: ‘Já imediatamente duas transfusões de sangue. Hoje é quinta-feira, segunda-feira vai para cima, para viver ou para morrer’. Olhem, em Viana, não havia sangue para mim, tiveram de recorrer ao Porto. No domingo a seguir, que era treze de maio, deu-me uma dor muito forte e eu não me podia mexer, tinham de andar comigo ao colo. Então pedi a uma funcionária para me pôr assentadinha junto de uma mesinha de cabeceira, que tinha um bacio dentro. Ela pegou em mim ao colo, assentou-me e eu despejei aquilo tudo para fora. Conclusão, na segunda-feira, a médica chegou e diz-me assim: ‘Rapariga, preparada para irmos para cima para ser operada amanhã?’. Eu, quase sem conseguir falar, só lhe disse assim: ‘Senhora Doutora Flora, eu estou preparada, mas desde ontem que me está a acontecer isto assim e assim’. Diz-me ela: ‘Desde ontem, 13 de maio? Quem rezou por ti rapariga?’. Digo-lhe eu: “Senhora Doutora, não sei. Sei que a minha mãe andou na escola a pedir à professora para rezar com as alunas, porque eu ia morrer. Foi o que Senhor Doutor me disse’. E diz ela: “Foi verdade isso, que eu estava presente e ouvi-o. O Doutor disse que se tivesses de ser operada, ias morrer ou viver, mas como o tumor arrebentou e despejaste tudo para fora, por enquanto, não és operada’. Graças a Deus, estou cá e até hoje, minhas queridas, não cheguei a ser operada! É por isso tudo que eu acredito e tenho muita fé!”
“Os conselhos que dou às crianças, é para acreditarem em Deus. A primeira coisa que temos de fazer é acreditar em Deus. Digo-lhes para pedirem muito a Jesus, para que nos dê um mundo melhor, que bem precisamos! Depois, eu tenho uma coisa, é que todas as crianças engraçam comigo, até estas, as das pessoas que vêm passar as férias e tudo, tudo engraça comigo! Sempre gostei muito de crianças, foi por isso que o Senhor me deu tantos netos e bisnetos.”
“Agora, pró futuro, só queria que o Senhor me ajudasse a poder andar até ao fim. Ao menos para me entreter aqui à beirinha. É só isso que eu peço a Deus, que não me tire o andar. Ando de chinelas. São a chinelinhas da massa para acabar com elas. Mas ainda agora pensei comprar outras para levar comigo. No inverno não ando, mas no verão ando sempre, mas tem de ser de chinelinha. Gosto, gosto de bater com o tacão. Sempre gostei muito da chinelinha. Naquele tempo, a chinela, era um luxo e os sapatos eram só para as pessoas que tinham muito dinheiro.”
“De maneira que, pronto, foi assim a minha vida. Passei trinta anos mauzinhos, de solteira passei mais ou menos, agora estou bem e feliz com a minha gente. E acho que já está tudo mais ou menos contado. O de mau e o de bom, vá lá. Mas, meu Deus, hoje sou acarinhada por tanta gente! Olhem, tenho muita sorte!”
Com um belo exercício de privilégio, assim finda esta bioconversa, onde, uma vez mais, se retrata um hino singular à perseverança e à autenticidade, desta vez materializado pela voz e pela vida de Dona Neves. Do Arquinho à Ribeira, soube ela, com o que a vida lhe deu, construir uma história feita de tudo! Feita de tristezas e alegrias, de labor, afetos e esperança. O seu testemunho é mais um exemplo inspirador de como a simplicidade, a fé e o amor podem transformar a vida - porque não a nossa - e deixar uma marca indissipável na memória coletiva de toda uma comunidade. Terminar este livro com a sua voz, cheia de chieira e alegria, é uma verdadeira honra. E assim, com a melodia imaginada do bater das chinelas, ecoando pelas ruas da Ribeira vianense, fechámos, por agora, estas páginas. Aproveitando ainda para, através delas, celebrarmos a beleza que mora em todas e cada uma das nossas Incríveis Pessoas Comuns.
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