
Uma bioconversa com Áurea Maria Fernandes Afonso.
Áurea Maria Fernandes Afonso, utente da Associação Castro Solidário, nasceu em Castro Laboreiro, no ano de 1939. Criada pelo pai e pelos avós e já depois de uma infância e adolescência repletas de memórias combinadas de contrastes, onde cabem a cultura da sua terra e os contextos de época da vila de Ponte de Lima e da Cidade Braga, formou-se como professora de instrução primária. Foi responsável pela literacia de muitos em Lamas de Mouro e, principalmente, em Cubalhão e pioneira do alojamento local em Portugal. Hoje, além das memórias menos positivas de um casamento pouco feliz, ensina-nos muito sobre as suas vivências, enquanto reestabelece um contacto especial até ao outro lado do mundo. Do Castro, à Vila, à Cidade e à docência Áurea Maria Fernandes Afonso, nasceu no lugar de Bago de Cima, na fabulosa localidade alto-minhota de Castro Laboreiro, a 13 de janeiro de 1939. Batizada com o nome de Áurea, haveria de ser registada na conservatória, apenas como Maria (sem Áurea). Talvez não parecesse aceitável a alguém, responsável naquele momento pelo registo, a associação de um nome tão brilhante[1] a um outro, já de si, tão venerável! No entanto, a junção dos dois, tal como o estimado leitor terá oportunidade de concordar pelo final desta bioconversa, não seria uma mera coincidência ou homenagem imerecida. Áurea Maria, filha única, haveria de ser criada pelo pai e pelos avós, num contexto de grande união familiar e de vincadas crenças católicas. A sua mãe, que partira cedo de mais, apenas um mês após o parto, haveria de contribuir, zelando pela vida da filha, a partir de um contexto imaterial. Da infância e da adolescência, Áurea guarda “memórias maravilhosas”. “Sempre fui tratada com muito amor e muito carinho… Sempre comi do bom e do melhor… e nunca andei em traquinices, de modo a poder honrar o nome da minha família”, afirma. Depois de aprender as primeiras letras na escola primária em Melgaço, haveria de descer a montanha em direção a Ponte de Lima para, aí, dar continuidade aos estudos “no Colégio Dona Maria Pia[2]”. “Sempre foi muito bem tratada pelas freiras do colégio e ainda hoje mantenho amizade e até vou comunicando, por carta, com uma amiga desses tempos de estudante”, confidencia. Mais tarde, mudar-se-ia para o “Colégio do Sagrado Coração de Maria”, em Braga, onde concluiria o “magistério primário e os estudos como professora, com uma média de quinze valores”. “Quando estava em Braga, tinha eu 19 anos, tirei a carta de condução. A regra daquela altura dizia que só se podia tirar a carta aos vinte e um anos, e para eu a tirar com dezanove, foi necessário o meu pai ‘emancipar-me’. Depois disso regressei a Castro Laboreiro”, acrescenta. Ainda dos tempos de menina, Áurea lembra a prática da transumância que caracterizava a sua comunidade desde os mais remotos tempos. “Durante o verão as pessoas habitavam na casa do Rodeiro, que era o lugar com maior altitude e, no inverno, desciam para Bago de Cima que era o lugar mais baixo e mais protegido da intempérie”, informa. Nesta conhecida prática comunitária, da qual hoje praticamente apenas persiste a memória coletiva de Áurea e do seu povo Castrejo, em cada viagem cabiam todos os pertences das famílias. Roupas, bens alimentares e animais eram levados, em carros de bois, para a inverneira ou para a branda conforme a época do ano. Eram tempos duros de migração e mudanças que hoje reconhecemos, privilegiados, através do imaginário, sendo possível, com a preciosa ajuda de uma visita ao Núcleo Museológico[3] da terra. Já com o adelgaçar da prática da transumância, tal como muitos outros vizinhos, o pai de Áurea haveria de construir “casa na vila de Castro” onde a família passou a residir definitivamente. “Lembro-me que, naquela época, tínhamos uma cadela Castro Laboreiro[4], mas era só para guardar a porta”, adita. Além dos costumes, do pastoreio e da parca agricultura, Áurea também recorda a emigração clandestina e, sobretudo, o contrabando, tão comum em zonas raianas de Portugal. “Era do que viviam praticamente naquela altura os castrejos”, afirma. Do património religioso, Áurea sente saudades das festividades de Nossa Senhora do Numão ou do Anamão. “Ia sempre a essa festa. Há uma lenda que eu ouvia contar pelo Senhor Padre Aníbal Rodrigues, que paroquiou a freguesia durante 56 anos. Ele dizia que foram os cristãos que, quando iam a fugir aos muçulmanos, esconderam uma imagem de nossa senhora numa lapa e, daí, surgiu a Nossa Senhora do Numão”, recorda, em referência às possíveis origens daquela lindíssima ermida. No entanto, a tradição local que mais marcaria Áurea seria a da “festa da Nossa Senhora dos Remédios”. “Ia com o meu pai ou com as minhas amigas. A festa acontece no último domingo de agosto. É uma festa do povo, de manhã acontece a parte religiosa e de tarde a profana… as tradições de Castro Laboreiro não podem ser comparadas às de lugar nenhum” acrescenta, cheia de convicção. O casamento com os bens do pai e os dez anos sem comprar um par de sapatos Depois de concluídos os estudos, Áurea retornaria a Castro Laboreiro. Para trás deixava a vida de estudante na Vila de Ponde de Lima e na Cidade de Braga e pela frente teria, à sua espera, uma carreira de mérito na qualidade de professora primária e um casamento pouco feliz. “Inicialmente, exerci funções de professora primária, no ano de 1961, na escola da freguesia vizinha de Lamas de Mouro. Depois, por uma colega ter pago para ficar com o lugar, nessa escola, fui dar aulas para a freguesia de Cubalhão e aí estive por vinte e sete anos”, informa. Pelo meio, Áurea, haveria de contrair matrimónio com um jovem “natural da Peneda”. “Eu casei quando tinha vinte e oito anos. Foi no dia 14 de janeiro de 1967, em Braga. Ele já andava atrás de mim há muito tempo… mas não casou comigo, casou com o que o meu pai tinha” afirma, sem rodeios. Do casamento haveriam de nascer três filhos: “O primeiro, infelizmente, faleceu à nascença. O segundo filho nasceu no segundo ano de casamento e o terceiro filho, quatro anos após o segundo… os meus filhos foram criados num ambiente muito familiar e, com a ajuda do meu pai, ingressaram em colégios privados e com educação religiosa… mas esses foram momentos de muito sacrifício, trabalho e contenção de despesas… estive 10 anos sem comprar um par de sapatos”, recorda. Esta mudança, para um papel de esposa e de mãe, agudizava as suas dificuldades em conciliar a vida familiar com a vida profissional. “Por essa altura tinha a minha avó em casa, acamada, e a precisar de cuidados que só eu lhe poderia prestar”, acrescenta. Ainda assim, investida de um perfil de grande lutadora, não desistiria do ensino e haveria de continuar a percorrer, pela nobre missão e por tantos cuja instrução dependia de sí, as estradas sinuosas daquelas terras de montanha. Os cerca de vinte seis quilómetros, ida e volta, entre Castro Laboreiro e Cubalhão davam-se de carro. O seu pai havia-lhe oferecido “um volkswagen”, do qual ainda recorda a matrícula “TO-21-82”. “Gostei muito da minha experiência como professora, mas no inverno sentia-me muito receosa devido ao caminho que tinha de percorrer até Cubalhão que, por também ser uma zona montanhosa, tinha sempre mais acumulação de gelo e neve”, confessa. Aos cinquenta e um anos, preocupada e ocupada com os problemas de saúde do seu pai, Áurea concluiria a sua nobre missão de professora, para se dedicar a uma outra igualmente nobre: “Nessa altura, pensei: Tenho que olhar pelo meu pai, não o entrego a ninguém, e assim foi”, afirma. Um reencontro a 14208 quilómetros de distância Após as partidas do seu pai e, em 1992, do marido, já com os filhos em fase de conclusão dos seus estudos, Áurea decidiu “melhorar o património”, que o pai lhe havia deixado em herança. Com o que podia, recuperava algumas casas, às quais apelidou de casas de São José, que depois arrendava aos turistas e forasteiros que visitavam as terras, ainda quase selvagens de Castro e do Parque Nacional, talvez à procura da sua flora e fauna únicas, como o Lobo Ibérico ou a Cabra-Montês do Gerês[5]. Aos 79 anos, Áurea, sofreria um AVC que ainda lhe limita o movimento. Apesar de “ter passado por hospitais e instituições de recuperação”, as sequelas e a paralisia lateral não seriam revertidas. “Estive seis anos num lar de idosos, cá no concelho, mas sempre tive o desejo de regressar à minha terra natal”, assume. A bem do seu desejo a oportunidade haveria de suceder no ano de 2024, quando ingressou na Associação Castro Solidário, uma IPSS da sua freguesia. “A doença atrapalha-me, mas sinto-me bem porque estou no meu meio ambiente”, afirma. Daquelas que considera como tendo sido as suas figuras de referência estão os avós, o pai e o tio Francisco. “O meu tio Francisco era irmão da minha falecida mãe e era muito meu amigo. Era como um pai, mas depois, infelizmente, morreu num acidente de viação”, informa. Contudo, a pessoa que mais ferverosamente destaca é o seu pai. Ele que sempre a acompanhou, que sempre a “ajudou a educar os filhos” e a “amparou num casamento pouco saudável”. “A minha vida teve altos e baixos, mais baixos depois que me casei, enquanto solteira fui uma rainha”, assevera, sem qualquer propósito de coincidência ou alegoria ao castelo[6] que domina parte da paisagem de Castro. Aos jovens de hoje, Áurea deixa um simples e robustamente experimentado conselho: “Antes de casar, pensem bem! Eles muitas vezes vêm à procura do El Dourado”. A residir atualmente na Associação Castro Solidário, Áurea aprecia entregar as suas horas vagas à leitura de livros, “de preferência de cariz religioso”. Reza o terço todos os dias e, na altura da Quaresma, aprecia fazer a sua “caminhada” de jejum e penitência, sem deixar de parte o adorado pão de centeio e cevada, tão típico da sua região. Entrega, também, algum do seu tempo às memórias do seu caminho singular. Não esquece os tempos do ensino e orgulha-a muito saber que os seus ex-alunos “são professores, advogados, engenheiros”. E é precisamente de um desses ex-alunos que, como interjeição fundamental a esta Bioconversa, nos chega literalmente do outro lado do mundo, um testemunho, uma homenagem: Hélder Carvalho, natural de Cubalhão e ex-aluno de Áurea, hoje diretor comercial de uma empresa portuguesa em Timor-Leste, testemunha: “Vasco, a professora Áurea foi minha professora… Foi ela quem ensinou a minha aldeia a ler. Ela e a Professora Constança. A Professora Áurea foi uma grande lutadora. Vê lá que nem com neve faltava à escola e vinha lá de cima de Castro. Lembro-me que ela tinha um Fiat azul, com o motor atrás… ainda o deve ter. Arrisco-me a dizer que a Professora Áurea foi a pioneira do alojamento local em Portugal. Uma máquina! Ainda há dias, em conversa com outros professores, apresentei o exemplo dela. Um exemplo a seguir”. Interpelada, Áurea responde prontamente: “Lembro-me perfeitamente do Hélder, de Cubalhão… Depois de sair de Cubalhão, disseram-me que ele foi estudar para padre, mas que desistiu mais tarde… quem me disse foi a mãe dele, que era muito minha amiga, chama-se Leonor… tenho de lhes enviar um beijinho”. É desta forma de tão diferente ligação alternativa, concretizada através de umas simples linhas de texto, que decidimos terminar esta Bioconversa: Uma homenagem à nossa querida Professora Áurea, tal como gosta de ser tratada; um elogio à sua essência gentil e pura, que se confunde com os predicados da natureza, quase intocável, da terra que a viu nascer; exaltando, através de um profundo exercício de privilégio, mais um exemplo, desta vez em tons dourados, de pura e plural Humanidade. [1] O nome Áurea vem do latim “aurum”, que significa “ouro”. Simboliza nobreza, riqueza, grandeza, beleza e luz. Na Roma Antiga, era um nome feminino comumente associado à prosperidade e representava uma deusa ligada ao sol. Biblicamente, o ouro simboliza pureza e sabedoria espiritual. [2] O Colégio Dona Maria Pia em Ponte de Lima, fundado em 1872 como Asilo de Infância Desvalida D. Maria Pia, foi inaugurado a 10 de julho de 1879. Inicialmente instalado em condições precárias, mudou-se para um edifício no Largo da Regeneração, adaptado para salas de aula e dormitórios. O colégio ensinava leitura, escrita, matemática e habilidades práticas como costura, bordado e música. As primeiras religiosas, Irmã Blandina e Irmã Clara dos Anjos, foram essenciais para o seu desenvolvimento. Em 1932, devido a dificuldades financeiras, foi criado o Colégio D. Maria Pia, anexo ao original, para ajudar a sustentar a parte caritativa da instituição. Um artigo mais detalhado sobre este Colégio, que recebeu estudantes de diferentes localidades, pode ser consultado em: https://pontedelimacultural.pt/colegio-d-maria-pia [3] O Núcleo Museológico de Castro Laboreiro está localizado na antiga Fábrica de Chocolates de Caravelos (antiga fábrica que também é, em si mesma uma bonita curiosidade). Dedicado à história e tradição da freguesia, o museu aborda aspetos da paisagem e vivência locais, como Brandas, Inverneiras e Planalto. Numa construção anexa, é recriada uma casa típica da segunda metade do século XX. O museu oferece um centro de documentação e um espaço para exibição de filmes sobre as tradições castrejas. [4] O Cão de Castro Laboreiro é uma das raças caninas mais antigas de Portugal, originária da freguesia de Castro Laboreiro em Melgaço. Conhecida por guardar rebanhos e proteger propriedades, esta raça é robusta e imponente, com machos medindo entre 58 e 66 cm e pesando entre 30 e 40 kg, e fêmeas entre 55 e 63 cm e pesando entre 25 e 35 kg. Com pelagem curta e densa, geralmente tigrada ou castanha, o Cão de Castro Laboreiro é admirado por sua lealdade, coragem e adaptação a diferentes climas e terrenos montanhosos. Historicamente, ele protegia rebanhos durante transumâncias de curta distância contra predadores como lobos e raposas. A raça se desenvolveu em uma região montanhosa e isolada, resultando em suas características únicas. Para informação mais completa, poderá consultar o sítio web do Clube Português de Canicultura, em: https://www.cpc.pt/racas/racas-portuguesas/cao-castro-laboreiro [5] A cabra-montês (Capra pyrenaica) é uma espécie rara em Portugal, atualmente encontrada na Serra do Gerês e na Serra Amarela. Esta espécie destaca-se pela sua habilidade em escalar terrenos rochosos e íngremes, sendo uma característica distintiva da fauna montanhosa portuguesa. No século XIX, a cabra-montês foi considerada extinta em Portugal, mas graças aos esforços de reintrodução na Galiza, voltou a colonizar terras portuguesas. Atualmente, é possível observar grupos de cabras-montês na Serra do Gerês, reconhecidas pela sua agilidade e capacidade de adaptação ao ambiente montanhoso. Aconselha-se uma consulta ao sítio web do Parque Nacional da Peneda-Gerês ou a leitura do antigo da National Geographic Portugal, em: https://pnpgeres.pt/2022/08/20/cabra-montesa-na-serra-do-geres ou https://www.nationalgeographic.pt/meio-ambiente/os-malabarismos-prodigiosos-das-cabras-monteses-no-geres_1236 [6] O Castelo de Castro Laboreiro, na vila de Castro Laboreiro, Melgaço, possui uma história rica. A região tem ocupação desde a pré-história, com muitos monumentos megalíticos no planalto próximo. Durante a Reconquista cristã, Afonso III de Leão cedeu a área ao conde D. Hermenegildo, que transformou o castro num castelo. O castelo alternou entre domínio muçulmano e português, sendo reconquistado por D. Afonso Henriques em 1141 e ampliado por D. Sancho I e D. Dinis. No período das Invasões Francesas, integrou o plano defensivo da fronteira do Minho. Em 1944, foi classificado como Monumento Nacional. Em 1659, um raio destruiu a torre de menagem e áreas adjacentes.
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