
Uma bioconversa com Júlio Manuel Gomes Rodrigues.
Júlio Manuel Gomes Rodrigues, utente do Centro Paroquial Social de São Pedro de Merufe, nasceu em Monção, no ano de 1929. Pressionado pela mãe a seguir o sacerdócio, descobriu ainda na escola primária o amor da sua vida. Já adulto , Júlio haveria de se tornar num Ranger, membro do grupo de operações especiais do Exército Português, tendo servido em Moçambique e Angola nas décadas de 50, 60 e 70, onde demonstrou coragem e liderança. Destacou-se como atleta em competições de tiro desportivo e soube conciliar uma vida profissional, tão alternativa, com a sua vocação de marido e pai, ajustando-se sempre às constantes exigências de um mundo em mudança.
Um pedido de casamento no banco da escola
Júlio Manuel Gomes Rodrigues nasceu no lugar de Trogal, freguesia de Tangil, concelho de Monção, no dia 29 de novembro do ano da graça de 1929. Filho mais velho de um casal de irmãos, viveu uma infância marcada pela aventura, pela engenhosidade, mas também por uma sensibilidade assertiva, quase profética, própria de uma personalidade capaz de distinguir o que bem quer. Com o pai emigrado, do lar onde morava, faziam parte a sua mãe, irmã e os avós maternos.
Em criança, frequentava a escola primária da terra, segregada entre sala para rapazes e sala para raparigas, tal como ditavam os usos e costumes da época. “Naquela altura a escola era dividida, meninos para um lado e meninas para o outro, no final do dia havia as lutas, sem ferimentos, brincadeiras saudáveis nos caminhos para casa…”, recorda Júlio. Nos tempos livres, aguçava a curiosidade encontrando inspiração nas artes da família. “O meu avô e um tio eram carpinteiros e nas férias tinha de os ajudar… gostava muito de fazer brinquedinhos com arames e latas e depois fazer corridas para ver qual andava mais. Também gostava muito de andar com uma mota de madeira feita por mim. Lembro-me de, no outono, fazer taramelas para colocar nas árvores e que depois rodavam consoante o vento e faziam barulho… gostava de correr e fazer rasteiras aos outros para vencer… nessa altura tínhamos de inventar, dependia das nossas capacidades”, afirma com um sorriso. “Uma outra história curiosa… eu ainda andava na escola primária e, um dia, virei-me para uma menina e disse-lhe: “tu vais ser a minha namorada a minha esposa e a mãe dos meus filhos. E acabou por se cumprir mais tarde”, acrescenta.
Em 1939, ano de início da Segunda Guerra Mundial, Júlio, haveria de concluir, em terras de Deu-la-Deu Martins, a quarta classe e ingressar, logo de seguida e por pressão matriarcal, no Seminário de Braga. “A minha mãe dizia-me que queria que eu fosse padre, mas eu dizia-lhe que não queria… Não queria aquela vida para mim de ir da sacristia para a residência e da residência para a sacristia”. Em todo o caso, a vontade da família ainda era quem mais ordenava e Júlio lá seguiu para a Cidade dos Arcebispos. Consigo, além da pequena mala, carregava a declarada incumbência familiar em se tornar padre. No rosto levava, bem vincado, um sentimento de grande contrariedade e a cobrir-lhe o peito, a paixoneta por aquela menina, a quem se havia declarado pouco tempo antes. “Eu, naquela altura não tinha grandes sonhos. Aliás, não tinha sonhos, mas quando andava no seminário, sonhava sair de lá… lembro-me dos retiros que fazíamos em agosto, lembro-me de alguns dos meus colegas fugirem de lá por não quererem ser padres… e eu também pensava nisso porque o que eu queria mesmo era casar com a minha namorada”, afirma. “Ainda aguentei e ainda me dediquei aos estudos até o quinto ano, mas depois deixei o seminário… Tive de arranjar um emprego, para ganhar liberdade, porque a minha família queria mesmo era que eu fosse para padre. Eu sei que aquilo de eu ter saído do seminário, para eles, foi um desgosto… e foi ainda mais para o meu pai que tinha emigrado, a salto, para conseguir dinheiro para que eu pudesse estudar”, reconhece. “Foi aí, quando fiz o quinto ano, que comecei a pensar mais no meu futuro. Pensava para mim: o que é que eu posso fazer com o quinto ano?… Comecei a pensar em ocupar um lugar ao balcão de um qualquer patrão… e um dia, quando ainda andava no Seminário… Nessa altura eu fazia o comboio de Braga para Nine e de Nine apanhava o comboio que vinha para Viana e depois para Monção… Um dia vinha do seminário para Monção e decidi sair em Viana para procurar emprego… Nessa altura havia lá, na estação, um sítio onde se podia deixar, por algum tempo, a mala e eu deixei lá a que trazia… Por coincidência, vi um anúncio na estação que dizia: “Procura-se um empregado para escritório com o quinto ano”. Lembro-me de ter subido umas escadas que havia, lá na estação, e fui responder a essa oferta de emprego… aquilo era um trabalho para os caminhos de ferro. Aceitei, mas estive lá pouco tempo”, acrescenta.
Dessa mesma infância e dessa mesma juventude, além da irreverência e da determinação, Júlio, guarda ainda, entre ténues memórias, outras saudades e nostalgias, mais vivas, cuja potência lhe provoca um largo sorriso. “Desses anos, tenho saudades dos serões onde as pessoas se juntavam durante a noite, na altura era nas cortes dos animais… e dos namoricos durante os serões e as tardes”, afirma.
Ficheiros quase secretos
O tempo da juventude, em contraste com as demoradas viagens de comboio entre Braga e Monção, passava a voar, e Júlio, um jovem-adulto, comprometia-se agora, intrinsecamente, com outros sonhos e deliberações exclusivas. Com as feridas familiares ainda malcuradas, causadas pela desistência de um sacerdócio sem correspondência vocacional, em 1948, Júlio decide deixar a vida de solteiro. Casar-se-ia com Isolina, a mulher que, desde aqueles bancos da escola primária, feitos de pau, lhe havia condicionado qualquer outra propensão. “Lembro-me que casamos no Santuário de Nossa Senhora do Sameiro”, informa Júlio.
Entretanto, com família recém-constituída, tornava-se necessária, para Júlio, a salvaguarda do devido sustento. Passado pouco tempo, haveria de o encontrar através de uma carreira profissional, previamente crivada de coragem e bravura. “O meu avô e o meu tio eram carpinteiros e eu até aprendi algumas coisas com eles, mas um dia pensei: vou para a tropa! Eu queria e precisava de um emprego que não fosse na agricultura, ainda que trabalhar na agricultura não fosse vergonha nenhuma, mas não era isso que eu queria para mim. Até que, pouco tempo depois de casar, tinha eu vinte anos, fui chamado a uma junta militar em Monção… aquilo fazia-se fila… éramos muitos. Fui aprovado e fui para Tavira. Como já tinha o quinto ano, fiz a tropa toda em Tavira já como sargento miliciano… depois também abriu um concurso para Segundo Sargento de Infantaria, para o quadro das forças armadas, e eu amarrei logo”, afirma.
Júlio daria, através dessa mesma decisão, início a uma longa, muito longa, carreira militar. Mais tarde, na conhecida escola do Exército em Lamego, haveria de acrescentar ao currículo, a patente de Capitão. Isto depois de cumprido o reconhecido, prestigiado e extremamente exigente curso de “Instrutores e Monitores de Operações Especiais”[1] que, nessa edição, seria apenas “concluído por onze militares”. A sua bravura levá-lo-ia a defender heroicamente a pátria portuguesa, em contextos tão adversos quanto aqueles que se viveram nas décadas de cinquenta, sessenta e setenta, sobretudo, em Moçambique e Angola. Por entre episódios e detalhes não revelados, naturalmente merecedores de grande curiosidade, é certo que Júlio evidenciou um forte perfil de liderança, coragem, camaradagem e sentido patriótico, nas diversas missões para as quais foi convocado a participar.
Através de um breve exercício cronológico, cujos detalhes de missão não encontram lugar nestas linhas, Júlio haveria de participar em várias missões especiais em Moçambique, entre 1958 e 1962, e em Angola, entre 1965 e 1966 e posteriormente entre 1973 e 1974. Além da sua vocação militar, Júlio haveria, ainda, de se destacar como atleta de excelência em modalidades de tiro, tendo sido um dos primeiros agentes especiais portugueses a participar em competições de tiro desportivo, conquistando diversas medalhas. Por entre o cumprimento das exigências bélicas de outros tempos, cujas gerações mais jovens só reconhecem através de livros de história, Júlio haveria de ser pai de dois filhos, nascidos em 1959 e 1966, que foram crescendo em constate mudança, “sempre com mochila às costas”. Apesar de toda a agitação em torno de uma profissão tão desinquietante, arriscada e quase secreta, Júlio conseguiria conjugar o seu alto desempenho militar com o, igualmente exigente e desafiante, papel de marido e de pai. “Eu sempre fui muito dedicado e disciplinado”, afirma.
Conhecido por “Capitão”
Depois de uma longa carreira profissional, ligada ao Exército Português, Júlio haveria de continuar ativo, inquieto e prosseguiu, noutros âmbitos, o seu serviço à sociedade portuguesa. Com residência em Braga, bem perto de um tão próximo “Regimento de Cavalaria 6”, Júlio envolver-se-ia ativamente, em 1995, num movimento de proteção do património histórico do Parque das Sete Fontes. Entre 2005 e 2009, viria a ser eleito membro da Assembleia Municipal de Monção, tendo participado ativamente na vida política do concelho que o vira nascer, na qualidade de deputado municipal.
Paralelamente, sempre que visitava Tangil, onde é conhecido por “Capitão”, fazia questão de “usar a máquina”, uma roçadeira, para limpar os seus próprios campos e procurava ajudar, solicitado pelos seus conterrâneos, na resolução dos mais diversos problemas relacionados ao Exército.
Homem de fortes convicções, Júlio, é também membro da Sociedade Portuguesa de Naturologia e permanece vegetariano desde 1961.
Hoje, aos 95 anos, é um enorme exemplo de vitalidade, disciplina e dedicação intelectual. Continua a cultivar-se, lendo um qualquer livro da sua biblioteca pessoal e o jornal diário, procurando manter-se informado sobre as atualidades do mundo, agora tão diferente. “No meu tempo livre, gosto de ler o jornal, de ir ao café e de debater política… A política é um grande interesse meu. Eu vivia a política… É através dela que podemos escolher o melhor caminho para o nosso país”, afirma convicto.
Com uma vida tão diferente, marcada pelo convívio com tantas pessoas, realidades, desafios e momentos históricos únicos, Júlio permite-nos o acesso a uma reflexão profunda: “Eu tive muitas pessoas que me marcaram na vida. Na minha infância, marcaram-me a minha mãe e os meus avós maternos pois era com eles que passava os meus dias, o meu pai não estava cá. Ao longo da vida tive muitas outras pessoas que me marcaram, sobretudo muitas das pessoas com quem convivi no Exército e nas guerras… essas, as guerras, onde estive foram os meus maiores desafios… o grande sonho que eu tinha era regressar vivo da guerra… o Exército, a guerra de Africa aquilo foi muito duro, foram oito anos de guerra! Apesar disso nunca pensei em mudar de atividade. Estar no Exército era o que eu gostava, mas sempre me adaptei bem a tudo… e foi de ter enfrentado esses desafios, que vieram as aprendizagens e a experiência… Até que o melhor conselho que já recebi na vida veio da experiência. A experiência é quem mais nos ensina… foram essas experiências e essas aprendizagens que me deram as forças para superar o regime salazarista… Depois, os momentos mais importantes para mim foram o 25 de abril, o casamento e o nascimento dos meus filhos. De tudo isto vieram os valores que me guiaram a vida: a honestidade e o respeito pela nossa existência. Sou católico, mas a minha religião é respeitar o próximo… se hoje pudesse dar um conselho aos mais novos dizia-lhes para serem atentos àquilo que é o melhor para eles e para lutarem, sempre, por esse objetivo… Hoje já não sou um rapazinho do seminário, nem um militarão de carreira, agora sou alguém mais velho que já tem alguma idade… o que eu desejo para o presente e para o futuro… Isso agora é muito difícil, porque a minha vida é um somatório de vitórias e derrotas. Há sempre alguma coisa a emendar em nós. Agora é viver um dia de cada vez”, conclui.
A residir, atualmente, no Centro Paroquial Social de São Pedro de Merufe, Júlio é reconhecido pela sua honestidade, dignidade, disciplina, por uma visão à frente do seu tempo (talvez à frente do nosso), querido e estimado por todos quantos beneficiam do privilégio de o conhecer.
[1] O Curso de Instrutores e Monitores de Operações Especiais, conhecido por Rangers, é um curso de seleção de elementos para uma unidade do Exército Português destinada a executar missões de alto risco, operações irregulares, guerra não convencional, contraterrorismo, reconhecimento especial, confronto de alvos de grande importância, entre outras missões.
Abaixo, registam-se algumas imagens representativas das memórias de Júlio, quatro exemplos materiais de cortesia.
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