
Uma bioconversa com Artur Alves do Vale.
Artur Alves do Vale, utente do Centro Paroquial e Social de Lanheses, nasceu nessa mesma freguesia, em 1936. Homem de grande generosidade, boa-disposição contagiante e jeito para a bola, jogou no Sport Clube Vianense, emigrou para o Brasil e para França, à procura de um sustento que haveria de encontrar em Portugal. Casou com Rosália, o seu grande Amor, e juntos criaram uma família unida que hoje representa o seu maior motivo de orgulho. Artur demonstra, através da sua história, que alguns dos segredos para uma vida plena residem no exercício constante da bondade, da simplicidade, da honestidade e da resiliência.
Raízes, bom aluno e o jeito para a bola Artur Alves do Vale nasceu a 13 de dezembro de 1936, em Lanheses, uma pequena localidade em Portugal, ladeada pelo Rio Lima, pelos campos verdejantes, sob a supervisão da Serra de Arga e de Nossa Senhora do Minho. Desde cedo, a sua vida foi marcada por desafios que moldariam o seu carácter. Durante a infância, frequentou a escola primária em Lanheses, onde teve como professor Gabriel Gonçalves, conhecido pela sua disciplina rigorosa. “O professor Gonçalves não tolerava preguiça e exigia sempre o nosso melhor. Era bravo, era daqueles antigos mesmo, dava umas reguadas e não eram poucas”, recorda Artur. Nos tempos livres, o jovem Artur brincava nos campos e ajudava a família nas tarefas agrícolas, especialmente na época das colheitas. “Recordo-me com carinho das brincadeiras com as outras crianças daquela época e com os amigos da escola primária”, acrescenta. Terminada a quarta classe, Artur continuou os seus estudos na Escola Comercial de Viana do Castelo, uma cidade com um rico património histórico e cultural, sede do seu concelho. Artur era bom aluno e destacava-se na matemática. “Eu, a matemática por exemplo, cheguei a tirar 18, de 1 a 20. Mesmo sem livros eu era bastante bom aluno”, afirma orgulhoso. “A paixão pelo saber e por aprender sempre me guiou, mesmo sem ter as melhores condições para isso. Naquela altura eram poucos os que as tinham”, acrescenta. Jovem esforçado e talentoso, Artur sempre procurou superar as adversidades com determinação, ajudando a família como podia e alimentando, nos tempos livres, “o gosto pela bola”. Naquele tempo, “as distrações em Lanheses eram poucas, havia poucos carros e tudo ficava longe. Havia era uns bailezitos ao domingo na Casa do Povo e a gente juntava-se lá e também havia o futebol. O futebol, esse é que movimentava mais gente. De vez em quando havia lá uma festinha da igreja, como a da Nossa Senhora das Necessidades, e lá vinha uma banda de música, uma vez por outra, mas também era raro. Era tudo pobre, as senhoras só usavam saias, nós homens lá usávamos umas calças que hás vezes se rompiam e tínhamos de remendar. Na Páscoa é que usávamos um fato novo, para não parecer mal”, recorda sorridente. Ao longo da sua juventude, Artur, jogou no Sport Clube Vianense, o mais antigo clube de futebol português, fundado em 1898, e também o clube de futebol mais tradicional de Viana do Castelo. Aprender sobre disciplina, trabalho em equipa e perseverança através do futebol representou para Artur uma das melhores fases da sua vida. “Nessa altura eu era novo, tinha dezasseis anos e o Vianense estava na terceira divisão. Eu tinha um colega meu, que é o Remígio, também aqui de Lanheses. Éramos como irmãos e jogávamos lá. Éramos mesmo como irmãos. Naquela altura, fomos os dois jogar para o Vianense e estivemos lá três anos. Corremos muito, jogamos em muitos campos. Foram umas três épocas muito boas. Eu e o Remígio éramos os únicos estrangeiros, entre aspas, que estávamos no Vianense, mas fazíamos ver, jogávamos bem. Éramos os parolos, mas jogávamos bem”, afirma orgulhoso! “Jogar no Vianense foi uma das melhores fases da minha vida. Aprendi muito sobre disciplina, trabalho em equipa e perseverança”, acrescenta nostálgico. Os treinos e os jogos acirrados encheram de alegria essa fase da sua juventude, deixando memórias que guardará para sempre. “A camaradagem e a paixão pelo futebol que eu e o Remígio tínhamos, uniram-nos de uma forma que ainda hoje lembro com muitas saudades”, adita Artur. Novelas na emigração Aos 20 anos, “no dia 24 de junho de 1956, no Dia de São João”, Artur emigrou para o Brasil, numa decisão tomada pela necessidade de sustento de um “casamento por procuração” que deixara apalavrado “com uma jovem de Lanheses”. “Eu naquela altura não sabia fazer nada, não sabia fazer nada de especial, não tinha especialidade nenhuma. Fui para o Brasil sem um trabalho certo, mas cheio de coragem”, afirma. A chegada, depois de uma demorada viagem transatlântica, representou para Artur um choque cultural e emocional. A realidade de São Paulo revelava-se bem diferente do seu Portugal natal. “No dia em que cheguei, chovia muito, muito mesmo. Quando entro na Alfândega, lembro-me de ver muitas mulheres a fumar aqueles charutos de tabaco… Era uma cultura muito diferente”, recorda Artur. “Quando chego e vejo toda aquela realidade… ainda por cima, a pessoa que tinha ficado de me esperar, lá na Alfândega, não apareceu. Nesse momento, eu percebi que tinha ficado realmente sozinho e por minha conta. Foi tão estranho aquele momento para mim que, se o barco que me levou me trouxesse de volta, naquele mesmo momento eu tinha dado meia-volta e tinha-me vindo embora. Passado algum tempo, essa pessoa que tinha ficado de me esperar lá apareceu e eu, um bocado assustado, ainda lhe disse: Carago, pensei que não vinhas!”, recorda. Artur não teria como o saber, mas essa seria apenas a primeira das várias “novelas” que as terras de Vera Cruz lhe haveriam de reservar. Jovem desenrascado, Artur haveria de conseguir um trabalho como mecânico, “empregado por um patrão português”. “Esse meu patrão tinha uma filha em idade de casar e queria que ela se casasse com um português. Como eu era português, tentou arranjar um casamento entre mim e ela, mas eu recusei, porque já tinha compromisso e casamento marcado em Lanheses. Só que a jovem de cá soube que sucedia no Brasil e terminou o noivado”, revela Artur. . O destino, dono de sí, não deixaria o jovem imigrante por casar e, após apenas três meses contados a partir desse episódio, Artur conheceria e casar-se-ia com Rosália, não sem antes o obrigar a passar por uma nova peripécia. Rosália, lisboeta e, tal como Artur, emigrada no Brasil, era um rosto reconhecido. Passava, todos os dias, às portas da vista do jovem mecânico, no seu percurso para a Casa de Moda de Senhora onde trabalhava. Tão rápido Rosália descia a calçada, como crescia a paixão entre ambos. Até que num rasgo de vontade mútua, contra vontade do padrasto e da mãe de Rosália, os jovens enamorados decidem casar-se. “Houve um dia em que nós marcamos um encontro junto ao elétrico na Avenida Rio Comprido, em São Paulo. Quando o padrasto e a mãe dela souberam, ela sofreu um bocado. Foi nesse momento que eu decidi que tínhamos mesmo de casar. Como ela era menor de idade, para poder casar iria precisar da assinatura do pai. Só que ele vivia em Lisboa e, aí, eu não tive hipótese, tive de falsificar a assinatura dele, mas conseguimos casar”, recorda Artur, como quem demonstra que o amor verdadeiro supera qualquer oposição. “O nosso amor foi mais forte do que qualquer obstáculo“, acrescenta. Juntos, Artur e Rosália, haveriam de ter uma longa vida matrimonial, repleta de cumplicidade e carinho por 63 anos. Para o jovem casal, a vastidão da cidade de São Paulo, o ritmo frenético do dia a dia e o convívio com a enorme diversidade cultural eram avassaladoras. A vida difícil e a tentativa de alimentar financeiramente o novo lar parecia representar uma constante corrida contra o tempo. “Apesar das dificuldades com que vivíamos, aprendi a ser mais forte e a adaptar-me um pouco melhor às mudanças, e isso foi muito importante porque, nessa altura em que fui para lá, eu estava habituado a alguma liberdade daqui, mas lá não podia andar assim à vontade. Tenho a impressão de que naquela altura, lá, não gostavam muito dos portugueses. Até nos chamavam galegos. Na verdade, aquilo era um atraso de vida, muita pobreza, muitos crimes. Aquilo, naquela altura, só era bom para passear” afirma. De facto, o Brasil dos anos 50 vivia um período de tentativa de modernização acelerada sob a presidência de Juscelino Kubitschek. A construção de Brasília simbolizava a tentativa de reforço do otimismo de um país que, apesar de tudo, contrastava com algum pessimismo e esforço de Artur e Rosália, perante os desafios que tinham de enfrentar, como a insegurança. Em todo o caso, o jovem casal resistia e trabalhava arduamente, sob calor intenso e uma cada vez mais abrasadora vontade de regresso a Portugal. “Foi uma época difícil, mas também aprendi muito. São as experiências mais difíceis que nos tornam pessoas mais fortes ao longo da vida“, conclui. Artur e Rosália haveriam de permanecer por seis anos no Brasil, tendo regressado a Portugal, já com um filho, no ano de 1964. “Quando regressamos, ao atualizar o Bilhete de Identidade, tivemos de voltar a casar porque os registos de casamento do Brasil não eram válidos em Portugal. Assim, casamos duas vezes”, recorda divertido. “Ainda estive uma temporada em Lisboa, a trabalhar numa casa de um representante de uma empresa de carros que se chamava Bedford. Depois emigrei para a frança, em 1978. Foi assim: eu vim do Brasil para Portugal, depois fui para a França e estive lá 6 dias, regressei a Portugal porque não me dava lá. Estive aqui três meses, a trabalhar num lagar de azeite que o meu pai tinha. Ele gostava muito daquilo e eu sentia que tinha de o ajudar. Depois ele fechou o lagar e eu regressei a França. Ainda lá aguentei mais 3 meses, mas depois regressei de vez a Portugal”, explica. Em França, Artur haveria de trabalhar novamente como mecânico e envolver-se-ia em novas peripécias que testariam, uma vez mais, a sua capacidade de enfrentar desafios. “Às vezes, é preciso mostrar de que material somos feitos, mesmo que para isso tenhamos que ser um pouco mais audazes“, comenta. “Lá na França, eu tive uma outra história curiosa. Eu trabalhava como mecânico na construção de uma ponte que passava pelo Rio Arz. Um dia o encarregado vem à minha beira e diz-me assim: “O teu trabalho não vale nada! O teu trabalho não vale nada!” Eu fiquei tão triste e aborrecido com aquilo que parei o que estava a fazer e sentei-me. Fiquei a pensar: “Eu tenho que arranjar uma maneira de te lixar!”. E assim foi! Eu sabia que o encarregado, nos sábados ia à terra dele. Nós, durante a semana, estávamos lá em campanha e ele costumava deixar o carro estacionado, num sítio perto da obra. Houve um dia, numa sexta-feira à noite, sem que ninguém visse, avariei-lhe o carro de propósito. Ele, no outro dia bem queria pegar no carro, mas o carro não pegava. Pois lá teve de recorrer ao Vale, que era assim que eu era conhecido lá, para lhe resolver o problema. Pus-lhe o carro a trabalhar e, a partir desse dia, eu já era o melhor do mundo”, recorda divertido. “Depois também houve lá um problema com um camião que se enterrou na lama. Eu fui lá ajudar e lá conseguimos tirar o camião. Pronto e depois a partir daí, já me deram outro tipo de valor, mas o meu reconhecimento profissional começou daí, de uma brincadeira”, conclui. Apesar de se sentir cada vez mais valorizado em França, Artur mantinha o desejo e os planos de retornar a Portugal, no mais breve prazo que lhe fosse possível. As saudades eram “mais do que muitas” e serviam a função de força motriz para a emergência de estratégias que lhe permitissem criar, no seu país, uma forma de governar a vida, cuidar de Rosália dos, agora, três filhos. A família e as experiências como legado Com tal fervor, a segunda estadia em França também não duraria muito e, passados apenas 3 meses, “finalmente” se dava um novo regresso a Portugal, desta vez, para sempre. Quando chegou, robustecido de coragem e valores como a disciplina, o compromisso e o trabalho em equipa que aprendera com o futebol e com a emigração, Artur abriu “uma pequena indústria de venda de materiais de construção”, que se tornaria uma referência na região. A sua forma de estar ajudou-o a lidar com os desafios profissionais e a criar um almejado sustento para a sua família. Estáveis e empenhados, Artur e Rosália, criaram juntos “uma família maravilhosa”, com filhos e noras que são motivo de grande orgulho. A relação com as suas noras é especialmente significativa para Artur, que as considera como filhas. “Ver a minha família unida e feliz é o meu maior legado”, diz com orgulho. Festas de Natal, aniversários e reuniões eram momentos de pura alegria e união. “Cada encontro familiar era uma celebração da vida e de amor”, afirma. Nos negócios, as suas abordagens justas e humanas tornaram-no uma figura respeitada e admirada por todos, não só em Lanheses, mas também nas localidades vizinhas. “Sempre acreditei que o respeito e a justiça são as bases de qualquer trabalho“, afirma. “As pessoas que trabalharam comigo eram como uma extensão da minha família, e sempre procurei tratá-las bem“, conclui. Artur manteve o negócio por 15 anos. Após esse período, fechou a “indústria” devido a problemas de saúde, e reformou-se aos 60 anos. No entanto, continuou “a dar apoio a um primo, na área da construção, até aproximadamente os 70 anos”. Infelizmente, aos 80 anos, a esposa de Artur adoeceu. Imbuído do grande amor que ainda guarda e de um forte sentido de responsabilidade, Artur haveria de cuidar de Rosália até ao momento da sua partida. A doença e a partida da esposa foram períodos dramaticamente poderosos para ele, que mesmo hoje, sempre que recordados lhe chegam com grande emoção. Reflexões sobre a bondade e sabedoria Hoje, Artur reside no lar do Centro Paroquial e Social de Lanheses, onde partilha todos os dias a sua contagiante alegria, emoção e gratidão por uma vida cheia. Mantém-se ativo e envolvido, participando em eventos sociais e nas diferentes atividades, sempre bem-humorado. Continua a acompanhar o seu Futebol Clube do Porto, “tanto nas tristezas como nas alegrias”. A sua vida é um exemplo inspirador de coragem, determinação e amor pelas causas. “O segredo da vida está na simplicidade e na honestidade”, assegura Artur. “Ser bom e fazer o bem é o mais importante. E a vida passa muito depressa, por isso é importante vivê-la bem”, acrescenta. Aos mais novos Artur ainda aconselha: “Nunca deixem que os obstáculos vos façam desistir. Sejam resistentes e acreditem sempre em vocês mesmos”. Consolidando o seu legado de inspiração e sabedoria, Artur tornou-se um homem exemplar, que inspira, contagia e emociona todos os que vivem à sua volta com o seu carinho, sensibilidade e bondade singulares.
Deixe um comentário