
Uma bioconversa com Agostinho Gonçalves Campos.
Agostinho Gonçalves Campos, utente do Centro Paroquial Social de Barbeita, nasceu em Longos Vales, Monção, em 1939. Desde cedo mostrou uma personalidade aventureira e resiliente. Foi contrabandista, emigrante, agricultor, funcionário público, militar e atleta. Casou, teve uma filha, dois netos e enfrentou a perda da sua esposa com coragem. Acumula dezenas de distinções, continua a praticar exercício físico diariamente e a vencer (sim, vencer!) provas de atletismo.
Agostinho nasceu no lugar de Velhas, freguesia de Longos Vales, no concelho de Monção, em 27 de maio de 1939. Depois de concluir a escola primária dedicou-se ao “contrabando de café, tabaco e ovos”, que passava de barco para a Espanha. “Havia que trabalhar e as oportunidades, naquela altura, estavam no contrabando”, recorda sorridente. “Primeiro tínhamos de pagar aos carabineiros de lá e aos guardas daqui e depois lá a gente conseguia passar as coisas para o outro lado da fronteira”, acrescenta. Apesar de ser “um trabalho arriscado”, era uma atividade lucrativa que lhe permitia “ganhar mais do que com o trabalho na agricultura”. “Só com dois volumes de tabaco passados para o outro lado da fronteira, ganhava-se para pagar a dois homens, dois dias ou três de trabalho”, recorda. Como tantos outros nas zonas raianas, dedicado ao contrabando, Agostinho “ia vivendo e crescendo”. Aos 18 anos, em busca de melhores oportunidades, decidiu emigrar para França. A viagem, no entanto, não decorreria como o esperado. Ultrapassada a fronteira, Agostinho ainda percorreu boa parte do território espanhol, mas acabou intercetado “pelos carabineiros e preso às portas de Hendaia”, uma localidade histórica, conhecida pela imigração portuguesa daquela época como uma das principais portas de entrada em França. “Eramos dezasseis companheiros de viagem”, recorda. A polícia espanhola acusou-os de entrarem ilegalmente no país e prendeu-os “durante três meses, num forte militar”. Passado esse período, levaram-nos “para uma cadeia civil em Salamanca”, onde ficaram detidos por mais um mês. Agostinho assegura que, apesar de estar encarcerado, se “comia muito bem na prisão”, especialmente no único Natal que lá passou. Conta que “havia sempre comida e bebida à fartura”. “Nunca na minha vida, nem mesmo hoje, vi tanta comida como lá e eramos servidos à mesa. Sopa cada um servia para si e tirava a que quisesse, o resto da comida era servida à mesa”, afirma. “No Natal, então, a comida era tanta, tanta… nunca tive Natal com tanta fartura”, acrescenta. Cumprida a pena, os militares espanhóis trouxeram o grupo à fronteira de Vilar Formoso e entregou-o aos guardas portugueses. “Na época, o Presidente da República era o Américo Tomás e ele tinha concedido amnistia para quem era apanhado e regressava como nós. Foi o que nos valeu, pois caso contrário íamos para o chicote… como já tinham ido muitos antes de nós. Era o que a PIDE[1] fazia para descobrir quem eram os passadores… mandava as pessoas para o chicote”, recorda Agostinho. Malograda a hipótese francesa, Agostinho decidiu mudar o rumo e partiu para Angola. Primeiro esteve em Benguela e depois em Sá da Bandeira[2]. Lá, trabalhou em fazendas de grande produção agrícola, onde diariamente se cultivavam e colhiam bananas, batatas e tomates. “Trabalhei, também, numa plantação de tabaco onde tinha sete estufas à minha responsabilidade e eram 200 pessoas a trabalhar… o meu patrão disse-me quando cheguei: tu não vais pegar na enxada, vais trabalhar com a cabeça, a mandar e a organizar o trabalho dos outros. E era o que que fazia”, revive Agostinho. Mais tarde, em busca de melhores oportunidades, decidiu concorrer “para funcionário do estado”. Foi selecionado e contratado como condutor de máquinas pesadas. “Nesses tempos eram cerca de setenta buldózeres a abrir fazendas e estradas na floresta”, relembra. Agostinho diz, emocionado, que aqueles anos em Angola foram os melhores da sua vida. “Ganhava bem, comia bem e não tinha ninguém que me chateasse. Aquilo era muito bom. Não faltava trabalho. Ganhava um conto de reis, comidos e bebidos todo os meses”, afirma. Estável, Agostinho, “aproveitava a vida” e não pensava em casar-se. Talvez o casamento colidisse demasiado com o seu espírito livre. Entretanto, sem que nada o fizesse prever, o destino e o amor fizeram com que Maria da Conceição cruzasse o seu caminho. Natural de Coimbra, Maria da Conceição, era proprietária de uma pequena empresa de confeções. “Empregava quatorze mulheres e já tinha a sua vida orientada. Conhecemo-nos, ela era muito meiguinha comigo, acabamos por casar, lá em Angola, e tivemos uma filha”, relembra Agostinho. Depois de quatorze anos em Africa e com um novo contexto político e social a emergir em Portugal, Agostinho decide regressar com a família. “Naquela altura, o estado português pagava, aos que regressavam, todo o tempo que estivessem à espera de emprego e nós aproveitamos e viemos”, relembra. “Desde essa altura, nunca mais voltamos a Angola”, acrescenta com um profundo lamento. Em Portugal, depois de algum tempo aguardar “guia de marcha” para novo emprego, Agostinho foi finalmente colocado num quartel do exército português, em Coimbra, terra natal da sua esposa. “A minha carta de condução estava cheia, não tinha mais licenças para tirar e como tinha as cartas todas, ligeiros e pesados, colocaram-me em Coimbra como motorista do General”, justifica. Agostinho permaneceria no exército por vinte e dois anos, até atingir a idade da reforma. Durante o seu período de serviço, além de motorista, trabalhou ainda como “mecânico”. Todo esse tempo e experiência permitem-lhe, atualmente, propriedade e opiniões vincadas sobre a evolução automóvel. “Os carros daquela época eram muito melhores dos que os de hoje. Cheguei a ter um Toyota durante de vinte e sete anos, sempre impecável. Depois comprei um carro novo, levou um toquezinho, já fiquei com o carro novo estragado. Vendi-o novo, com seis mil quilómetros. Aquele Toyota antigo é que era. Os carros daquele tempo eram feitos para durar”, afirma. Infelizmente, “há cerca de quatorze anos”, Maria da Conceição partiu. Sem outros motivos de apego a Coimbra e com uma “cunhada bastante doente em Monção”, Agostinho decidiu voltar a Longos Vales para a apoiar. Num gesto de grande altruísmo, foi seu cuidador ao longo de dez anos. Com a partida da cunhada e com a única filha “emigrada em Malta”, Agostinho resolveu “ir para o lar”. “Hoje estou tão bem. Não podia estar melhor”, afirma Agostinho. O exercício como paixão, as provas e as medalhas Agostinho sempre gostou de correr e de praticar exercício físico. Recorda que em criança, quando andava na doutrina, corria com os amigos à volta da igreja. O senhor padre quando via os meninos a correr, incentivava-os e dava um rebuçado a quem ganhasse a volta. “Eu ficava sempre em primeiro ou em segundo”, vinca Agostinho. Com o “bichinho pela corrida e pela competição” latente, Agostinho decide, aos sessenta anos, “entrar em provas de atletismo” e, desde então, não parou mais. “Enquanto estive em Coimbra, corria pela equipa da Universidade de Coimbra e treinava na Mata Nacional do Choupal”, recorda. “Fazia sempre duas meias-maratonas por ano, além de outras provas de mil, cinco mil e dez mil metros”, acrescenta. Às participações juntava as vitórias. Ganhou tantas medalhas e taças que lhes perdeu a conta. “Só de pista tinha quarenta e tal medalhas de primeiro lugar e taças foram mais de cinquenta. Nas competições de cinco mil metros, ao arranque já ganhava a prova… não tenho uma que tivesse gostado mais do que outa. Guardo memórias bonitas de todas em que participei… gostei de todas. Correr e participar era como um vício”, acrescenta legitimamente orgulhoso. Maria da Conceição apoiava-o sempre, mesmo quando este ponderava “desistir por via da doença dela”. Ele dizia-lhe: “Não vou mais a prova nenhuma”. Maria da Conceição, já doente e com dificuldade em acompanhar o marido atleta nas viagens para as provas, respondia-lhe: “Vais. Vais e eu vou contigo. Eu não quero que tu deixes de correr”. Visivelmente emocionado, Agostinho reconhece: “A minha mulher foi a pessoa que mais me marcou na vida, mesmo doente nunca deixou de me apoiar”. Agostinho comenta que sempre se preparou bem e “antes de cada prova fazia sempre quarenta e cinco minutos de aquecimento”. Por vezes, os atletas mais novos, espantados com a sua energia, diziam-lhe: “O velho mata-nos, o velho mata-nos!”. A último evento em que participou foi a Prova Solidária de São Silvestre[3], na semana do Natal ao Ano Novo de 2023, de onde “trouxe uma taça e duas garrafas de vinho alvarinho”. “Lembro-me que tínhamos sete à nossa frente. E eu dizia para o Miguel que ia comigo: É ter calma que a gente vai passá-los. E passamos!”, acrescenta. Agostinho continua a praticar exercício físico quotidianamente. Prepara-se para, honrando o desejo de Maria da Conceição, vencer mais memórias felizes numa próxima competição. A sua rotina diária inicia-se “às seis da manhã, com um aquecimento de quarenta e cinco minutos, a subir e descer, sempre devagar, as escadas do Lar”. Depois, no exterior, “quer chova ou faça sol”, percorre doze quilómetros em ritmo de marcha. No regresso, com exceção para os dias em que o calor aperta, utiliza um pequeno ginásio que o Lar tem no jardim, para “trinta minutos de remo”. “Ainda cheguei em tempos a fazer quarenta quilómetros por dia de bicicleta, mas hoje já não faço porque é perigoso andar na estrada de bicicleta”, observa. Agostinho afirma que graças ao exercício físico regular nunca teve problemas de joelhos ou nas articulações. “Os médicos até ficam admirados porque, apesar da Parkinson e da idade, quase não tomo medicação… e comer, como de tudo. Bebo sempre um copinho de vinho ao almoço. Ao domingo, dois”, diz bem disposto. O exemplo que se mantém forte Agostinho é um exemplo de vida, de força, de coragem e de resistência. Viveu muitas aventuras, enfrentou muitos desafios, conheceu muitos lugares e pessoas, e nunca perdeu a simpatia e a boa disposição. Gosta de viver ativo e saudável e de se “dar bem com toda a gente”. Além do exemplo material que representa, aconselha os mais novos “a serem bem-educados, a não entrarem em discussões e a nunca desistirem dos seus sonhos”. Para o futuro, Agostinho alimenta a expectativa de poder vir a “acrescentar mais quilómetros às pernas, em mais provas de atletismo”. Além desse anseio, apenas deseja que a sua única “filha e os netinhos estejam bem”. “Quanto ao resto, já está tudo feito”, afirma realizado. No entanto, não pode, não quer, nem consegue “estar parado”. Hoje, aos 85 anos, Agostinho é uma verdadeira fonte de inspiração para qualquer pessoa. [1] A PIDE, acrónimo de Polícia Internacional e de Defesa do Estado, foi um órgão de polícia política portuguesa, que funcionou entre 1945 e 1969. Tinha como principais funções a repressão e controlo de todas as formas de oposição ao regime político do Estado Novo e o controlo do serviço de estrangeiros e de fronteiras; [2] Atual cidade de Lubango. [3] A Prova Solidária de São Silvestre é um evento anual que liga as localidades vizinhas de Monção e Salvaterra de Miño. Com um percurso de cerca de cinco quilómetros, esta prova de atletismo associa o desporto à solidariedade.
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