
Uma bioconversa com Olímpia Fernandes Garrido Barreiros.
Olímpia Fernandes Garrido Barreiros, utente do Lar de Santa Rita de Cássia, da Santa Casa da Misericórdia de Caminha, nasceu na freguesia de Seixas, em 1928. Cedo se mudou para Caminha, onde teve uma infância e juventude feliz, educada e corajosa. Casou-se por procuração e mudou-se para Lourenço Marques, onde enfrentou um casamento de pouca sorte e a Guerra Civil Moçambicana. Depois de fugir para Angola, retornou a Portugal com um filho no colo. Fazendo uso das suas habilidades e com a ajuda da sua família recomeçou a vida. Hoje é um verdadeiro e gracioso testemunho de valores que nunca perderão importância no tempo.
Nascida da foz do Minho, com nome consagrado
Maria Olímpia Fernandes Garrido Barreiros nasceu no longínquo ano de 1928, em Seixas, no concelho de Caminha. Seixas é uma agradável freguesia ribeirinha, pontuada por bonitos palacetes burgueses, onde as águas calmas dos ariscos rios, Minho e Coura, se fundem com as marés do oceano Atlântico. A localidade é também conhecida pela curiosa expressão de gabarito popular: “Seixas, Paris e Londres”.
Nascida de uma família de seis irmãos, mudar-se-ia bem cedo para a vizinha sede de concelho, praticamente antes do primeiro choro. “Eu nasci em Seixas, mas logo que eu nasci fomos imediatamente para Caminha. Eu tinha de ser registada e o meu pai queria que eu fosse registada onde houvesse escolas e, por isso, é que passámos para Caminha. Eu fui um de entre seis irmãos, cinco meninas e um rapaz e fomos todos registados como tendo nascido em Caminha. Eu era a terceira filha. Éramos uma família muito unida. O meu pai, não é por ser o meu pai, era uma pessoa de uma sensibilidade, de uma educação… E todos recebemos uma educação muito boa. O meu pai era uma jóia, era conhecido como o Senhor Garrido. A minha mãe era mais ativa no serviço de casa e vivíamos todos com a minha avó”, recorda Olímpia.
Tal como era entendimento da família, durante a sua infância, Olímpia frequentou a escola primária de Caminha, onde se destacou como aluna de excelência, com especial dom para a disciplina das letras. Uma paixão que, aliás, fez por perpetuar ao longo da vida e que ainda hoje mantém. “Eu felizmente fui à escola, muitos naquela época não tinham essa possibilidade. Fiz a quarta classe e frequentei a escola primária de Caminha. Eu era muito boa aluna e a minha disciplina preferida era a da escrita. Gostava muito de escrever. E olhe, que até é engraçado… é que há tempos veio aqui uma senhora que se lembrou que eu andei na escola dela[1]. Ainda me lembro de duas professoras que tive. Uma era a Professora Eurídice e a outra, que tive mais tarde, era a Professora Ângela. Nunca mais me esqueci delas”, recorda.
Da sua infância de menina e da sua adolescência, vivida em jeito de mangas arregaçadas, Olímpia guarda ao seu jeito único, como jóias dentro de um cofre, pequenas e intensas memórias das peripécias familiares. “Uma das memórias que me recordo de infância era de a minha mãe, às vezes, ralhar com o meu pai. O meu pai era demasiado bom, mas não tinha grande coragem. O meu pai era alfaiate. Era alfaiate de carril e era muito conhecido. Ele tinha à volta de trinta empregados. Uns diretamente no sítio onde trabalhavam, outros trabalhavam em casa. Lembro-me de até eu ter aprendido a fazer calças de homem. Olhe que uma das coisas mais difíceis de fazer na alfaiataria são as calças. Naquela altura, eu também ajudava a fazer as calças de homem. E depois, também, fui curiosa e comecei a ver as contas que o meu pai tinha no livro. Ele tinha clientes ricos que lhe deviam muito dinheiro. Eu comecei a lhe ver as contas e disse-lhe que me ia encarregar disso, de receber o dinheiro que estava por pagar. Eu disse-lhe: “vai me dizer quem são, porque eu vou lá”. E foi assim que eu comecei a recolher o que era devido. Lembro-me que cheguei a ir a uma mansão. Cheguei a ir a Viana do Castelo, a casa de duas senhoras conhecidas para lhe pedir o dinheiro que nos deviam… Eu pedi ao meu pai para me passar as contas e fui atrás das pessoas para ele poder receber. Portanto, quando era mais nova, nessa altura ajudava o meu pai com as contas e a solicitar os pagamentos, sempre que os clientes faziam de conta que se esqueciam de pagar. E de maneira que a minha mãe, por vezes refilava e tinha razão, porque o meu pai tinha ao seu cuidado o pagamento dos empregados, que era à semana… que distribuía os ordenados …que pagava. Recorda-me da minha mãe lhe dizer “também tens de pensar nas despesas de casa”. E tinha mesmo até porque nós éramos todas muito novas”, relembra. “Também me recordo, tal como se fosse ontem, de quando íamos fazer praia à Praia de Moledo… que saudades! Alugávamos uma casa em Moledo e íamos juntamente com a minha mãe. O meu pai ficava em Caminha com os empregados durante o dia e depois ia ter connosco, a Moledo, para comer com a gente. Que saudades desses tempos…”, acrescenta, utilizando um suspiro como ponto.
Uma viagem de ida e volta a Lourenço Marques[2]
Os anos passavam, e a vida de Olímpia, que seguia com tanta pressa, parecia contrastar com o vagar das sucessivas locomotivas que praticamente lhe “atravessavam” o quintal de Caminha. Os tempos de casamento, tal como era desejável para a época, faziam-se anunciar e, com vinte e dois anos, Olímpia casa-se por procuração, num procedimento igualmente comum naquela contemporaneidade. Por marido figurava um jovem natural de Caminha, que vivia em Moçambique desde criança. No enxoval, um pequeno bilhete de barco para Lourenço Marques, de ida e sem volta anunciada, onde a aguardava um esposo. “Eu acabei por me casar por procuração. Naquele tempo faziam-se dessas coisas. O meu marido também era de Caminha, mas já estava lá desde miúdo. Por isso, ele já era mais moçambicano do que português. A viagem foi de barco. Senti-me muito nervosa a fazer uma viagem tão longa até Moçambique. Foi uma nova experiência. Na verdade, vivi em caminha até aos vinte e dois anos e, depois, fui para Lourenço de Marques, em Moçambique. Casei e fui para Lourenço Marques. Foi assim…”, revive.
No entanto, o casamento não havia de lhe reservar boa memória. Talvez o nervosismo com a viagem e a passagem pelo cabo das tormentas (que deveria ser da Boa Esperança) fossem já um prenuncio daquilo que a sorte lhe guardava no destino. “O meu casamento foi um desgosto, porque não contava. Eu conhecia muito bem a família do meu marido e nunca soube da infelicidade… Ele nem era mau para mim, não. Ele era funcionário de uma veterinária, tinha de saber fazer o que fazia. Mas fora isso era alguém que estava muito integrado na cultura de lá e que já era diferente da minha. Ele não era mau, não… mesmo com o álcool não era mau, mas para mim foi como que uma barreira que se me pôs, porque eu não estava habituada a ver um homem tão alcoolizado. Ele não era mau… e dizia-me sempre que eu tinha razão. Quando eu ralhava com ele, ele dizia, “tu tens razão, tu tens razão”. Ele nunca foi mau para mim, mas senti um desgosto muito grande ao perceber os vícios que ele tinha…”, afirma. No entanto, apesar de pouco feliz e desconformada com o destino, Olímpia ia trabalhando, cuidando sobretudo da casa, fazendo o necessário “trabalho doméstico”.
Mais tarde, com o avançar da década de setenta, anunciava-se no ar um outro pavor, este sim, decisivo na vida de Olímpia. Em 1977, rebenta a Guerra Civil Moçambicana e, com o conflito, iminentes ameaças à integridade da sua família. Consequentemente, Olímpia, à imagem de muitos outros portugueses, ver-se-ia obrigada a fugir. Primeiro para Angola, depois para Portugal. “Aquilo lá pôs-se muito mal com a guerra… com as matanças… ao fim de uns anos lá em Moçambique, já o meu filho tinha nascido, fomos obrigados a fugir… Lembro-me de nos mandarem sair imediatamente dali e tivemos uma ordem de vinte e quatro horas para fugir. Eu cheguei a ter na minha frente um rapazinho pequenino, que era filho de um funcionário da veterinária onde o meu marido trabalhava, que se virou para mim e disse: “senhora, senhora vai embora. Eu não mato a senhora, mas vem um amigo meu matar a senhora e eu vou ter de matar a senhora de outro…” e era mesmo isso que eles faziam, de maneira que aquilo foram horas de fugir. O meu filho tinha quatro ou cinco anos e eu quarenta. Tratamos de fugir e arranjaram-me logo um barco para viajarmos até Angola. Depois é que saímos de Angola, de avião, em direção a Portugal”, revive. A partir desse momento, com o marido para trás, Olímpia nunca mais haveria de voltar a ter contacto presencial com ele. “O meu marido ficou lá. A minha sorte foi a família. A minha família é que me acolheu com tudo, claro. Éramos uma família muito unida, muito, muito, muito… E pronto, o meu marido, esse, nunca me mandou dinheiro nenhum. Dizia sempre que não podia”, assume resignada. “A vida não foi fácil e além da Guerra Civil Moçambicana… Ai a guerra, essa foi a coisa que mais me marcou na vida, mas, além disso ainda tive de enfrentar outros desafios grandes. Naquela altura, quando eu era criança, também foi o tempo da tuberculose. Aqui em Caminha e em Viana, lembro-me de ter morrido muita gente jovem. Lembro-me que saímos da escola e íamos à casa daquelas que não tinham resistido, vê-las. E nós, lá em casa, éramos cinco e uma delas apanhou a tuberculose. Depois foi para o Porto. Era no Porto que havia um sanatório para jovens. Essa minha irmã ainda esteve lá muito tempo, mas felizmente melhorou. Aquilo era um perigo. Era muito contagioso. E, claro, o meu casamento foi também um grande desafio, porque ele ficou na África e eu nunca mais o vi…”, acrescenta.
Regressada a Portugal, sem a presença de um marido que a auxiliasse e com um filho pequenino para criar, Olímpia haveria de “dar rumo à vida”. Valeu-lhe a “família unida que tinha de nascença”, a capacidade de se “desenrascar” e a arte de “fazer calças de homem”, aprendida e aprimorada, com gosto e orgulho, na juventude. “Quando regressei a Portugal, havia um médico de Caminha, o Doutor Gustavo, ele até tinha um parentesco com o meu marido… Por intermédio dele, aprendi a dar injeções no hospital de Caminha. Eu gostei imenso de ter aprendido isso. Depois dava injeções a toda a gente que precisava, mesmo sem ganhar dinheiro, sem fazer vida disso. Dava-as para ajudar os outros, por gosto e porque não havia muito quem as desse. Eu ainda cheguei a trabalhar para uma alfaiataria, que eu nem conhecia os senhores, mas eles queriam alguém que soubesse fazer calças de homem e, assim, eu lá fui organizando a vida…”, afirma.
O peixe não puxa a carroça, mas o conselho puxa pela vida
Com um olhar luminoso, Olímpia recorda também algumas das suas memórias mais alegres e vívidas, como se folheasse as páginas coloridas de um livro só seu. “Quando era nova, tinha o sonho de ser enfermeira e de certa forma até concretizei esse sonho, só não tinha o canudo… mas também cheguei a fazer outras coisas das quais gostava muito… sabe, o meu pai era muito católico. Eu segui o exemplo dele e até fui catequista durante muitos anos, até vir viver aqui para o Lar. E também fui cantora do coro da igreja, e olhe que nós tínhamos um coro da igreja que era uma maravilha. Tínhamos um coro muito lindo, na Igreja Matriz de Caminha. Cantávamos muito bem, tínhamos vozes boas! E tinha uma irmã minha que era toda virada para o teatro e, por causa dela, até nós fazíamos teatro também…”, informa com o sorriso pleno.
Hoje o seu tempo livre é pautado por atividades mais tranquilas e plurais, que lhe calibram a curiosidade. “Agora gosto de fazer outras coisas. Gosto de ver televisão, gosto de ler, gosto muito de aprender coisas novas. Sou muito curiosa. Quero sempre saber o fundo das coisas…”, assume. Talvez fosse de esperar que, depois de uma vida marcada por contextos geográficos próximos ao mar, o peixe lhe fosse mais apelativo à mesa, no entanto, apesar de não ter uma iguaria favorita, são os pratos de carne que lhe colhem a preferência. “Hoje não tenho assim a ideia de um prato favorito ou que goste mais. Ainda assim, gosto mais de carne do que de peixe. O peixe não puxa carroça”, afirma com um largo sorriso.
As pessoas que mais influenciaram a vida de Olímpia estão intimamente relacionadas com os valores que adotou para si e que procurou defender ao longo de toda a sua caminhada. “As pessoas que mais me marcaram a vida foram o meu pai e as minhas irmãs e os meus valores vieram deles. Os meus valores sempre foram os valores da família, do saber e do respeito. A família é como um pilar fundamental, sempre valorizei muito o conhecimento e também sempre valorizei muito o respeito pelos outros”. É precisamente com base nestes valores, bem como nas grandes aprendizagens que a vida lhe proporcionou, que Olímpia sente a justa e legitima propriedade para, hoje e da sua bondade, oferecer um sábio conselho aos mais novos: “Se hoje pudesse dar um conselho aos mais novos, dizia-lhes que ninguém se deve casar sem conhecer a outra pessoa. E também lhes diria para estudarem, para serem muito curiosos e para se portarem sempre bem”, afirma.
Com uma serenidade imaculada, através de um exercício de fé e em alto contraste com alguns dos episódios que lhe marcaram a vida, Olímpia reserva o pedido de um único e simples desejo: “O que poderia eu agora desejar? Não preciso de muito para estar feliz. Só peço paz, tranquilidade e poder continuar com uma boa saúde. Agora, isso é o mais importante para mim”, conclui.
Aos noventa e sete anos, apesar de uma vida muito intensa e exigente, Olímpia oferece-nos o exemplo de uma grande mulher, de nome consagrado, cultivada de valores fortes e ancorados, que nem necessitariam ser traduzidos em meras palavras, valores que se sentem na sua presença, quase como se adquirissem a uma graciosa forma material.
[1] Informa Olímpia, referindo-se ao Lar Santa Rita de Cássia, onde atualmente reside.
[2] Lourenço Marques é o antigo nome atribuído à cidade de Maputo, atual capital de Moçambique. Localizada na costa sudeste do país, esta cidade foi rebatizada em 1976, após a independência de Moçambique. Durante o período colonial português, Lourenço Marques foi um importante centro administrativo e comercial.
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