
Uma bioconversa com Armando Rodrigo Soares Pereira.
Armando Rodrigo Soares Pereira, nascido em Santo Tirso em 1932, tornou-se uma figura incontornável da política vianense. Criado sem pai e como filho único, Armando foi autodidata e trabalhou na Fábrica de Fiação e Tecidos do Rio Vizela, fundada em 1845, antes de se mudar definitivamente para Viana do Castelo. Após uma carreira notável que se cruza, em 1976, com a criação da EDP, envolveu-se na política local e presidiu, por vinte anos, à Assembleia Municipal de Viana do Castelo. Fez erguer da vontade o Lar de Santa Teresa onde hoje reside e, é de lá, que nos revela a sua trajetória de resiliência, dedicação, compromisso com a comunidade e um grande amor que resiste ao próprio tempo.
Armando Rodrigo Soares Pereira, nome incontornável na política vianense, nasceu em Santo Tirso, terra de nome peculiar, no dia vinte e seis de março de 1932. Segundo a história, a antiga Moreira de Riba de Ave haveria de mudar o seu nome, adotando o nome do Santo, após a fundação de um importante mosteiro beneditino naquela localidade, por altura do século X e por iniciativa de D. Unisco Godiniz e do seu marido Alboazar Ramires, presumível filho bastardo do Rei Ramiro II de Leão. Este mosteiro, atualmente reconhecido como Monumento Nacional e altamente recomendado para visita, ainda preserva na sua fachada central, mesmo após várias reformas, a imagem representativa de Santo Tirso de Apolónia. Crê-se que, em Portugal, poucas serão as localidades cuja toponímia ou orago indiquem o nome deste santo de origem turca. Algo historicamente um pouco mais comum em terras como as altas e antigas de Espanha, nomeadamente na Galiza, em Leão ou nas Astúrias. Ainda assim, Tirso, o Santo, conhecido pela fé inabalável e pela perseverança na defesa da sua crença cristã, haveria de marcar o lugar de nascimento de Armando e, talvez, patrocinar a sua história.
“Eu nasci em Santo Tirso. Mais tarde vim para Viana do Castelo, já casado e com filhos. A minha família, na minha infância, era eu e a minha mãe. O meu pai, infelizmente, faleceu vítima de tuberculose quando eu tinha apenas sete meses de idade. Sou, portanto, filho único e nunca tive irmãos. Honestamente, nunca senti, assim, a falta de irmãos. Simplesmente não sabia como era ter irmãos, tal como nunca soube como era a experiência de ter o meu pai presente. Por isso, também não me preocupava com o facto de não ter irmãos”, afirma. “Fui crescendo, andei lá na escola, embora desses tempos de escola não tenha, assim, grandes memórias. Não me recordo bem da idade que teria, mas andei na primária em Santo Tirso e mais tarde fui para o liceu. No liceu, que era a Escola Industrial de Santo Tirso, só fiz o primeiro ciclo, depois desisti. Foi uma escolha, como tantas outras escolhas que se fazem na vida. Desisti porque quis, foi mesmo uma escolha. Depois, quando já era maior, comecei a estudar por mim e, ao longo da minha vida, praticamente sempre fui autodidata. Li muito. Cheguei a ter uma biblioteca com mais de cinquenta mil livros”, acrescenta.
Apesar de uma infância marcada pela ausência da figura paterna, Armando, talvez inspirado e protegido pelo exemplo do Santo, demonstrava desde cedo uma inclinação para fortes e próprias convicções que lhe alimentariam a resiliência. “Ainda jovem, comecei a trabalhar na Fábrica de Fiação e Tecidos do Rio Vizela. Essa fábrica ficava a sete quilómetros de casa, uma distância considerável na altura, principalmente porque não havia transportes regulares. Eu trabalhava de segunda a sábado ao meio-dia e só regressava a casa ao domingo, mas reconheço que foi aí, nessa fábrica, que aprendi o valor do esforço. Depois, só mais tarde, já eu estava casado e com filhos, é que surgiu a oportunidade de vir trabalhar para Viana do Castelo”, recorda. “Eu, em novo, não era muito de ir a festas. Não fui a muitas. Não era muito de sair, nem de ir às festas. Não gostava muito desse ambiente. As festas nunca foram uma grande atração para mim. Participava na Festa de São Bento, mas mais por fazer parte da tradição, nada que me marcasse profundamente. Curiosamente, conheci a minha mulher numa feira… ela era de Famalicão e conhecemo-nos lá, numa feira. Conhecemo-nos e começamos a namorar. Namoramos durante um ano e pouco. Ainda tivemos um arrufo, assim mais arisco, mas depois fizemos as pazes e pronto. Resolveu-se a coisa e casamos. Recordo-me bem desse dia. Casámos na Igreja de Esmeriz, lá em Famalicão, de onde a minha mulher era natural. Depois de casarmos fomos morar para a casa da minha mãe. Assim, como eu já trabalhava, começamos a juntar dinheiro. Eu sempre fui um homem de família e a minha mulher nunca trabalhou. Ela era o meu pilar. A minha mulher ajudava-me muito. Nunca teve cargos, mas esteve sempre, sempre, ao meu lado e juntos tivemos três filhos… entre a mais velha e a do meio é diferença de um ano e pouco, o rapaz, o mais novo, esse é que já nasceu quase quatro anos depois. Nasceram todos lá, em Santo Tirso. Todos nascidos antes da mudança definitiva para Viana”, acrescenta.
A Assembleia, entre a Hidroelétrica do Coura e o Prédio Coutinho
A mudança para Viana do Castelo haveria de representar não apenas um novo capítulo profissional para Armando, mas também uma extensão da sua jornada de vida, onde cada passo dado, cada escolha feita, lhe refletia, como num espelho, a busca incessante de propósitos, de entrega e dedicação à sua construção e principalmente à edificação de um legado comunitário duradouro.
“Estávamos na Póvoa do Varzim de férias. Tinha lá uma tia e, então, íamos lá passar férias. Era um costume. Nessa altura, uma pessoa amiga fez-me um convite para ir trabalhar para a Hidroelétrica do Coura. Considerei que deveria aceitar e assim fiz. Vim, sozinho, em 1954. Como se costuma dizer, vim ‘a apalpar terreno’, para ver o que me esperava. Nessa altura, vim para Viana e aluguei uma casa na Meadela. Mais tarde, já com a mulher e filhos cá, fomos viver para Monção, porque me dava mais jeito, por causa do trabalho. Depois vivemos em Caminha durante dez anos. Essa foi uma fase difícil, não posso dizer o contrário. Nós andávamos praticamente com as ‘trouxas às costas’ devido ao meu trabalho. Naquela época, como responsável, eu tinha de estar em muitos sítios diferentes. Era assim. Felizmente, um dia mais tarde, consegui comprar um terreno para construir a minha casa, perto da bomba de gasolina, à saída da cidade de Viana, em direção a Caminha. Essa casa foi feita por mim, para mim e para a minha mulher”, afirma. “Eu quando vim, para cá, comecei como topógrafo, mas mais tarde passei a coordenar uma secção chamada ‘Estudos e Construção de Projetos’. A empresa para a qual eu trabalhava era do setor da eletricidade, uma das catorze empresas que deram origem à atual EDP. Portanto, eu estive na EDP desde o seu início. Fui, inclusivamente, membro da comissão de trabalhadores da EDP, criada após a revolução… Nessa época, eu ia a Lisboa quase todas as semanas para reuniões. O objetivo era tentar negociar melhores condições para os trabalhadores da empresa. Lembro-me bem da revolução, do 25 de Abril. Lembro-me de estar a trabalhar em Melgaço. Eu andava por vários sítios e, naquele dia, ouvi, na estrada, que algo estava a acontecer em Lisboa… uma revolução. Aqui em cima, em Viana do Castelo, não se sentiu logo tudo, mas percebemos que muita coisa ia mudar e mudou mesmo”, assevera. “Depois, com o passar dos anos, comecei a conhecer mais pessoas em Viana e envolvi-me naturalmente na política. Eu sempre fui socialista. Identifiquei-me com os valores do Partido Socialista e filiei-me… admito que nem sempre foi fácil. Conseguir conciliar a vida pessoal com a vida política nem sempre foi simples… houve dissabores… até porque eu estive na Assembleia Municipal de Viana do Castelo durante vinte anos, que acabei por presidir até há pouco tempo… foram anos de luta, devo dizer que foram vinte anos de muita luta, de muitas decisões! Olhe, uma das decisões que mais me marcou foi a da demolição do Prédio Coutinho. Fui eu quem presidiu à reunião da Assembleia Municipal onde essa decisão foi aprovada”, recorda.
Um brinde à amizade, à obra e à menina dos olhos
Depois de todo um percurso dedicado ao trabalho, de um legado na sempre difícil vida política, outras memórias, de outras obras, outras referencias e valores consolidados, merecem para Armando, o legitimo destaque.
“Guardo boa memória de várias pessoas que acabaram por influenciar a minha vida. Um deles foi o Borges Serafim, um grande amigo. Caminhámos juntos, tanto na vida pessoal como na profissional. E, claro, a minha mulher, o meu porto seguro de sempre… passei por momentos difíceis, como os dois AVC e foram várias as pessoas que estiveram sempre lá, nesses momentos, comigo. O primeiro AVC que tive foi em 2005, quando ainda era presidente da Assembleia Municipal. Foi uma fase muito complicada. Senti-me mais vulnerável, e houve até quem tentasse aproveitar-se dessa minha fraqueza, mas resisti. O primeiro AVC foi o mais duro. Ainda assim, consegui terminar o mandato e manter a dignidade que o cargo exigia. Outro momento muito difícil foi o falecimento da minha mulher, esse custou-me muito… ela era muito importante para mim, era e sempre foi o meu pilar”, afirma emocionado. “Também viemos juntos viver para esta casa onde hoje estou. Esta casa que também é uma obra da qual fui um dos fundadores e da qual fui também presidente da direção, graças ao meu amigo Borges Serafim que era vice-presidente. Inicialmente comecei como secretário e mais tarde passei a presidente da direção. Ainda não estava a residir aqui porque não existia nada. Apenas existia o antigo convento fundado em 1788. Não havia recursos, não havia dinheiro, mas a ideia nasceu, a vontade existia e fomos criando condições. A Instituição estava muito endividada, mas com esforço e apoios, conseguimos erguer esta obra. Foi, sem dúvida, uma das maiores realizações da minha vida. Como costumo dizer, esta casa não podia viver sozinha, precisava de vida… então, mais tarde, eu e a minha esposa decidimos viver aqui. Vendemos a nossa antiga casa e viemos para aqui, já os nossos filhos eram adultos, já com a sua vida feita. E sentimo-nos bem aqui, sentimo-nos acolhidos. Esta era, no fundo, a continuação de uma casa feita com as minhas próprias mãos, com muito amor e dedicação… a construção deste lar foi mesmo o desafio maior. Naquela altura não havia nada, apenas vontade. Hoje, olho para tudo isto com orgulho. Esta casa é muito mais do que paredes: é a menina dos meus olhos”, afirma com um redobrado brilho no olhar.
“Hoje continuo a ser um leitor apaixonado. Quando decidi comprar esta casa, vendi ao lar a biblioteca que lhe falei anteriormente e hoje os livros fazem parte do seu espólio. Estão lá em baixo, ao dispor de todos… acredito muito no valor do trabalho, na perseverança, na força de vontade e, sobretudo, na importância da família. Mesmo que nem sempre tenha estado envolvida, a minha família foi sempre o meu suporte. As gerações de hoje são diferentes, têm mais tecnologia, tem um acesso mais facilitado à informação. Isso pode ajudar, claro, mas também pode afastar do essencial, por isso digo-lhes para nunca negligenciarem o valor do trabalho e sobretudo o valor da família… atualmente eu ainda uso o computador, leio as notícias, jogo um pouco. A minha mente continua viva e sinto que vivi uma vida cheia. Uma vida cheia, com altos e baixos, como todas as vidas, mas com amor, propósito e entrega. Sinto que deixei algo de valor: deixei uma casa construída com esforço, uma família unida, um lar para acolher outros. Cumpri os sonhos que tive. Sinto-me realizado. No final de contas é isso que mais importa”, conclui.
Hoje, aos 93 anos, Armando é um testemunho da força do espírito humano, capaz de erguer um legado, uma marca indelével, que transcende o tempo. O brilho que revela quando, ao longo desta bioconversa, nos relata os desafios, as conquistas e um amor que perdura, reflete a luz de uma alma que vive intensamente e que, através dessa claridade, nos empresta mais um, sem ser apenas mais um, verdadeiro exemplo inspiracional.
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