
Uma bioconversa com Maria do Sameiro Amorim.
Maria do Sameiro Amorim, utente da Associação Social e Recreativa dos Aposentados e Reformados de Valença, nasceu 1946, na Freguesia de São Lázaro, em Braga. Valenciana de coração, teve quatorze filhos, onde se incluem três partos de gémeos. Cegou completamente aos dezanove anos, mas nunca desistiu de lutar, contra todas as probabilidades, pelo sonho de bem criar os seus e ter uma casa sua. Maria do Sameiro é hoje um sinónimo vivo da palavra resiliência. Maria do Sameiro Amorim nasceu em 28 de maio de 1946, na freguesia de São Lázaro, em Braga, mas considera-se valenciana desde sempre. Os seus pais eram naturais de Arcos de Valdevez e “levavam a vida como tendeiros, vendendo coisas pelas portas”. Logo após o seu nascimento, a família mudou-se para a freguesia de Cerdal, em Valença, onde Maria do Sameiro passou os primeiros treze anos da sua vida. A infância de Maria do Sameiro foi marcada pelo “trabalho duro na lavoura”. Desde cedo, ajudava os seus pais nas mais variadas tarefas, como “cuidar do gado, ir ao monte às pinhas, à gravalha, lenha”, que depois vendiam às padarias, “e mato para fazer estrume”. Lembra-se de, ainda com corpo de menina, “andar com os pés esfolados de subir aos pinheiros para apanhar pinhas e de carregar os pesos à cabeça”. Nunca teve tempo, nem oportunidade de ir à escola ou de brincar com as outras crianças. O único consolo era a “sua fé em Deus e a sua devoção à Nossa Senhora”. Aos treze anos, Maria do Sameiro, mudou-se com os seus pais para Ponte da Barca. Aí, começou por trabalhar como “criada de casa na residência do senhor Silva, um homem rico que tinha várias quintas” naquela zona. Fazia de tudo: “limpava, cozinhava, lavava, passava, costurava, bordava, cuidava dos animais e das plantas”. Era uma vida de sacrifício, mas Maria do Sameiro nunca se queixava. Pelo contrário, sentia-se grata por ter um teto, uma cama e comida. O castelo de Guimarães entre Alfena e Ermesinde Aos dezanove anos, Maria do Sameiro conheceu o homem que viria a ser o seu marido. Chamava-se “José e era natural de Campanhã, no Porto”. “Ele era telefonista numa empresa na Rua de Paços Manuel e tinha mais dez anos” do que ela. Apaixonaram-se e planearam casar. Mudaram-se, então, para a freguesia de Alfena, “mesmo ao lado de Ermesinde” e foi precisamente aí, na velhinha[1] igreja paroquial de São Vicente de Alfena, que “com a bênção de Deus”, celebraram o seu matrimónio. Maria do Sameiro viveria na região do Porto os próximos vinte e dois anos da sua vida. E que anos! A vida não lhe foi fácil. Quinze dias depois de nascerem os seus primeiros filhos, o primeiro casal de gémeos, Maria do Sameiro ficou cega. Completamente cega! Conta que “ia a caminho de casa com um cântaro de água à cabeça e de repente” deixou de ver. “Foi como se uma nuvem me tivesse tapado os olhos”, recorda. Não sentiu dor, nem teve febre ou qualquer outro sintoma. “Foi um mistério que nunca se esclareceu”, acrescenta. Ficou desesperada, mas não se resignou. Continuou a trabalhar e a cuidar dos seus, “com a ajuda de Deus e da apurada memória”. Ao todo, Maria do Sameiro teve quatorze filhos, infelizmente dois deles não sobreviveram aos primeiros dias de vida. Entre os partos e “tantos que foram”, arranjou tempo para três pares de gémeos, acontecimento muito raro. Com tanta gente em casa, os trabalhos multiplicavam-se. “Todos os dias fazia a distância de 3 km só para lavar a roupa de todos. Carregava aquelas bacias grandes à cabeça porque em casa não havia nem água, nem luz. Com aquelas bacias de banho, que havia antigamente, à cabeça e cheias de roupa, aquilo parecia o castelo de Guimarães”, afirma bem humorada. A sua filha mais nova nasceu, por acaso, numa dessas “idas ao tanque para lavar a roupa”. “Sem apoio de ninguém, a não ser de Deus Nosso Senhor, ela saiu-me, caiu no chão. Eu apanhei-a, limpei-a, cortei-lhe aquelas cordas que ela trazia ao pescoço, amarrei as linhas, dei-lhe banho, metia-a na cama e fui já lavar roupa outra vez, porque tinha de ser”, afirma. Aos filhos, Maria do Sameiro fazia de tudo para lhes dar o melhor que podia. Mulher feita, agora cega, mas com a bravura de três, multiplicava-se nos esforços para cuidar da casa, da família e “ainda trabalhava para fora”. Para fora fazia um pouco de tudo: “vendia tenda[2], bordava e fazia croché”. “Ainda cheguei a trabalhar a empacotar azulejos numa fábrica em Vila Nova de Gaia e a vender cautelas da lotaria, mas essas davam pouco ganho”, acrescenta. Aos trinta e quatro anos, Maria do Sameiro ficou viúva. O seu marido, que sempre fora saudável, morrera repentinamente de cancro deixando-a sozinha, “sem apoio, sem pensão, sem nada e com doze filhos para criar”. “Passei muita fome, muita miséria, muita dor, mas nunca perdi a esperança, nem a dignidade”, garante. Maria do Sameiro era agora, “na flor da juventude”, o exemplo de uma mulher incansável, que nunca se deixara vencer pela fadiga ou até pelo mais certo e legitimo desânimo. Nesses tempos, os seus vizinhos ajudaram-na muito, dando-lhe “comida, roupa, lenha”, o que podiam. Ela agradece-lhes, ainda hoje, “de coração”. Os seus filhos “começaram a trabalhar cedo” de modo a poderem ajudar no sustento da casa. Maria do Sameiro orgulha-se de que “todos eles foram à escola e à catequese, todos aprenderam a ler e a escrever. Uns aprenderam mais do que outros, mas todos foram educados”. A “Croa” de Valença e a barraquinha dos turistas Depois de mais de duas décadas em Alfena e com quarenta e quatro anos de idade, Maria do Sameiro decidiu regressar a Valença. “Não tinha lá sequer família”, assegura. Foi uma decisão de coragem, mas também de oportunidade. Pensou para si: “Valença era uma terra turística e talvez aí pudesse governar melhor a vida”. Chegada a Valença, a destemida Maria do Sameiro, decidiu falar com o Senhor Presidente da Câmara Municipal. “Naquela altura o Presidente da Câmara era o senhor Mário Pedra. Eu fui ter com ele e pedi-lhe que me deixasse ali pôr uma barraquinha junto à muralha, mesmo em frente à Croa”, recorda. Sensibilizado pela evidente necessidade daquela senhora, cega, franzina e com doze crianças pela mão, “o senhor Presidente autorizou”. Maria do Sameiro passou, então, “a vender caramelos, chocolates, brinquedos, um pouco de tudo, às camionetas de turistas que chegavam e partiam todos os dias”. Para comprar mercadoria, “descia a Espanha”. Atravessava, para lá e para cá, sempre pé ante pé, a ponte internacional. Carregava à cabeça “uma caixa que pesava vários quilos e nas mãos vários sacos, sempre pelo menos dois em cada mão”. Era um risco que corria, porque “naquela altura havia vários fiscais” que podiam multá-la ou confiscar-lhe os artigos. Coisa que uma vez quase acontecia. “Certa altura fui apanhada por uma delegação de fiscais que tinha vindo do Porto. Revistaram tudo”, recorda. Os guardas disseram-lhe que teria de pagar “quinze contos de multa e que iria ficar sem os artigos” porque era material que vinha de Espanha e não estava declarado. Maria do Sameiro lembra-se “de muito chorar e de lhes implorar” que a deixassem seguir caminho. Um dos guardas teve pena e disse ao colega: “Deixa-a ir, coitada. A mulher tem de ganhar a vida!”. O colega concordou, mas não sem antes lhe estender um aviso: “A senhora hoje vai-se embora, leva o artigo e não paga multa, mas se alguma vez a volto a apanhar, tiro-lhe tudo”. Maria do Sameiro agradeceu-lhes e foi-se embora. “Mal cheguei à barraca, vendi tudo e, hora e meia depois, voltei logo a Espanha para comprar mais mercadoria”, conta sorridente. “Nessa hora em que voltei, eles já lá não estavam”, acrescenta. Os brinquedos, que também vendia, “esses ia buscá-los de comboio ao Porto”. Era uma viagem longa e cansativa, mas “valia a pena”. Vendia tudo quanto podia, sempre com simpatia e honestidade. Os turistas gostavam dela, compravam-lhe os caramelos e os brinquedos. Os seus filhos acompanhavam-na “debaixo da barraquinha”, ajudando-a a atender os clientes. Por vezes, “dormiam ali mesmo, debaixo da barraca, quer fizesse chuva ou trovoada”. Era uma vida dura, mas de grandes memórias. Maria do Sameiro teve “a barraquinha durante vinte e dois anos”. Foi o sustento de uma família só sua. Com o dinheiro que amealhou, conseguiu comprar um terreno e construir uma casa, na vizinha freguesia de Gandra, onde hoje reside. “Ter uma casinha foi o grande sonho” que alimentou toda a vida. Com muito esforço e perseverança conseguiu concretizá-lo. “Fui construindo a casa aos poucos, conforme podia. Ia juntando o dinheirinho, mandava vir um camião de material de cada vez e pagava sempre tudo a pronto. Nunca fiquei a dever um tostão a ninguém”, afirma. “A casa não é um palacete, nem um chalét”, mas é onde Maria do Sameiro reside e “onde não lhe chove”. Um futuro entre a fé e a família Agora, com setenta e oito anos, Maria do Sameiro já não tem a barraquinha nem trabalha para fora, mas continua a ser uma mulher independente e continua a fazer tudo em casa. “Arrumo, cozinho, mesmo cega, descasco as batatas e não lhes deixo uma pinta”, conta com um justo orgulho. “Para já”, não precisa de ninguém para lhe fazer nada, “nem para escolher a roupa para vestir”, acrescenta. Lembra-se das cores, das formas, dos rostos, de tudo o que observou e absorveu antes de ficar cega. Hoje, são essas lembranças vívidas que a ajudam no dia a dia. Além dos doze filhos, Maria do Sameiro tem dezoito netos e cinco bisnetos, “espalhados por Espanha, Valença, Monção e Viana do Castelo”. “Não estão longe e gostaria muito de os juntar todos”, mas infelizmente tal “nunca aconteceu”. “Nem é fácil, porque são muitos e todos tem as suas vidas, mas que era muito bom, lá isso era!”, reconhece. Maria do Sameiro é um sinónimo vivo da palavra resiliência. Teve uma vida de muito trabalho, de muito sacrifício e de muita coragem. Nunca se arrependeu de nenhuma das decisões que, com bravura, se viu obrigada a tomar. Nunca pensou chegar à idade que tem e, por isso, sente-se “grata por ainda por cá andar e ter saúde”. Se pudesse deixar um conselho aos mais novos, partilharia com eles o seu segredo de vida: “Trabalhar sempre e sem vergonha do mundo… Dizem que o dinheiro não nos traz felicidade e têm razão, mas o trabalho, esse, traz”. [1] A antiga igreja paroquial de São Vicente de Alfena, construída no século XVII, foi demolida em 1970 e deu lugar à atual Igreja Matriz. [2] “Vender tenda” é uma expressão por vezes utilizada como referência ao ato de feirar ou colocar produtos à venda numa feira. Neste caso em particular, a expressão refere-se à comercialização de itens produzidos em tecido, como pequenos bordados.
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