
Uma bioconversa com António Alves Gomes.
António Alves Gomes, utente da Casa Sacerdotal da Diocese de Viana do Castelo, nasceu no lugar das Neves, Freguesia de Mujães, Viana do Castelo, no ano de 1932. Com uma infância marcada pelo trabalho árduo e pela pobreza, desde muito cedo, ajudava o pai com os animais e realizava diversas tarefas para sustentar a família. Mesmo sem acesso à educação formal, aprendeu a ler mais tarde com a ajuda de amigos e colegas. Durante a juventude, trabalhou em várias regiões de Portugal como pedreiro e aprendeu uma linguagem própria, “o patuá”, do qual é hoje rara testemunha. Emigrou e chegou a conhecer Charles de Gaulle e Georges Pompidou enquanto trabalhava na reconstrução de sumptuosos palácios parisienses. Casou com Irene, com quem partilhou cinquenta anos de casamento, enfrentando juntos os desafios da vida, toda ela um testemunho que se desenrola como um novelo.
Um forninho feito de terra Estimado leitor, como por certo irá concordar, existem bioconversas que pela sua natureza se recontam sozinhas de tanta que é, por vezes, a riqueza das memórias nelas contidas. Fazendo lembrar um novelo de lã dourada, algumas haverá que ao puxarmos pelo início do fio, se desenrola através do soalho plano, demonstrando um curvado caminho que nos desvenda o percurso luminoso de alguém. Sugerimos, por isso, que nos acompanhe pela viagem desvendada neste belo novelo, não de lá, mas de vida igualmente dourada, que, por gentileza, nos oferece o seu tecelão. Sugerimos a que se permita à experiência da leitura, quase sem edição terceira, desta bioconversa que, pela sua riqueza material, se tornará, seguramente também para sí, verdadeiramente entusiasmante. António Alves Gomes nasceu no lugar das Neves, na freguesia de Mujães, concelho de Viana do Castelo a 15 de março de 1932. “Eu nasci na freguesia de Mujães, no lugar das Neves e aí fui criado até aos nove anos. Pouco depois, comecei a andar, a passear, por esse mundo fora… ou melhor a trabalhar! O meu pai era chamado pelo apelido de ‘Bucho’ e a minha mãe por ‘Maria de Ponte’. O meu pai tinha cinco irmãos e a minha mãe também. Nós, em casa, éramos seis, quatro rapazes e duas raparigas. A nossa casa era como uma corte, a cozinha era em terra batida, mas tinha uma sala que até era jeitosa… tenho apenas uma irmã mais velha do que eu, com noventa e seis anos, que está no Lar de Tregosa… eu era o mais velho dos rapazes e também sempre fui o mais castigado. A rapariga, a mais velha, ainda sabia umas letras, mas eu e os outros éramos todos praticamente analfabetos. Nenhum sabia ler! Quando fomos por esse mundo fora, com dezoito ou dezanove anos, depois tudo aprendeu a ler. O mais novo, esse, tinha a escola que queria… tinha os mais velhos a trabalhar para ele!” exclama António, com um sorriso sem desdém. “Eu nunca cheguei a ir à escola. O meu pai pôs-me na escola, mas a minha mãe, um mês ou dois depois de eu lá estar, como eu não aprendia… tive de abandonar. O professor também não prestava para ensinar… mais tarde, é que aprendi a ler, com os amigos, mas uma coisinha pouca… O meu pai, nessa altura, cuidava de terrenos que pertenciam a senhores que tinham quintas e pagava o aluguer dos terrenos em rasas de milho. O homem mais rico da minha terra era o Sr. Dias, era natural de Pessegueiro, para os lados de Vitorino das Donas, em Ponte de Lima. Depois, como casou com uma rapariga ali das Neves, que era rica, herdou bastantes terrenos lá e o meu pai era o caseiro desses terrenos. A minha mãe, essa, tem uma história mais complicada, não era caseira. Andava com o meu pai, ajudava, mas não era caseira. A minha mãe andava a amparar meninos[1]… naquele tempo não havia dinheiro, não havia nada. Vinham-na chamar de noite, a qualquer hora da noite, e ela lá ia. Ia sempre às casas que viviam mal, de pessoas muito pobres. Às vezes, também ia a umas casas onde as famílias já viviam melhor um bocado. De vez em quando, a essas famílias mais pobres, ainda lhes dava um galinhita nossa, para fazerem uma canginha. Nós, muitas vezes, tínhamos pouco para comer, mas ela ainda dava aos outros. Tinha pena daqueles que ainda eram mais pobres do que nós. E além de amparar meninos também era tecedeira. Fazia cobertas, fazia tapetes e mantas…”, acrescenta. António foi sempre uma criança solitária. A sua natureza e o quase inexistente tempo para brincar, fosse sozinho ou com outros, competiam diretamente com outras necessidades, como o trabalho e a fome. Esse confronto ambivalente, intrínseco e extrínseco, essa dissonância, incrementava-lhe ainda mais a solitude. “Eu, brincadeiras não tinha nenhumas, porque tinha de andar com o gado sozinho. Como os meus pais eram caseiros e tinham muitos bois e vacas, eu tinha de estar a ter conta nelas. Essa foi a primeira ocupação que tive, tratar dos animais… lembro-me bem de ter de estar com um saco pela cabeça para me agasalhar da chuva. Tinha de estar assim, senão molhava-me todo! Levava comigo, no bolso, um pedaço de broa e lá por volta da uma ou duas horas da tarde é que eu comia. Depois, estava ali até à noite. À noite comia uma sopinha e pronto… uma sopa mal feita. Passava-se fome! Não havia muito o que comer. Olhe, criava-se um galo ou uma galinha, em casa, e era para vender. Não se comia! Criava-se um porco e vendia-se… A fome às vezes era tamanha que eu ainda me lembro de, em criança, andar a roubar fruta para comer. O que é que eu havia de fazer?! Roubávamos umas maçãs, fazíamos um buraco na terra e metíamos maçãs no buraco. Fazíamos uma fogueira por cima e lá cozíamos as maçãs, assim, debaixo da fogueira. Escavávamos um forninho, metíamos lenha a aquecer o forninho e as maçãs lá para dentro. Depois, comíamos umas cruas, outras meio assadas, mas lá as comíamos de qualquer maneira”, afirma. “Eu, em criança, vivia sempre sozinho, nem sonhava com nada. Olhe, aprendi a doutrina para fazer a primeira comunhão e foi a minha mãe que me levou ao padre, para eu comungar, para fazer a primeira comunhão e a comunhão solene. Fiz as duas coisas ao mesmo tempo! Eu sabia pouco a doutrina, também nunca gostei muito da doutrina. A minha mãe, naquela altura, disse ao Senhor Abade ‘olhe que o meu filho é atrasado à beira dos outros. Nunca brincou com os outros, nunca lidou com ninguém, viveu sempre sozinho, viveu como um bicho, viveu sempre sozinho e está atrasado nisto e naquilo…’ e o Senhor Padre perguntou-me: ‘Olha lá menino, se eu bater na tua mãe, isso está bem ou está mal?’… E eu, depois de ouvir aquilo, deu-me o riso e digo assim: ‘Ó Senhor Padre, eu não sei!’ Bom, eu até sabia, mas disse-lhe que não sabia. E ele lá disse que eu podia ir fazer a primeira comunhão e a comunhão solene. Depois disso, a minha mãe foi ter com um senhor doutor que trabalhava lá, que era doutor Vieira Pinto, e pediu-lhe uma roupinha emprestada, para eu levar para fazer a comunhão. A roupa era dos dois filhos que ele tinha, que eram mais velhos do que eu. Ela lá foi pedir a roupita, ele deixou e lá levei uma camisolinha. Ainda me lembro da camisola, era da cor da telha! Levei também umas calças, como estas que eu tenho assim vestidas hoje, de ganga, lisinhas. Eu vivia assim, era uma vida triste! Era muita pobreza”, acrescenta, com um lamento conformado. No entanto, a sua ansiosa vontade, talvez até pouco consciente, talvez até alicerçada numa necessidade que lhe aguçava o engenho, fazia com que António sentisse a sua vida fervilhar e clamar pela chegada dos seus doze anos. “Tive de fazer os doze anos para poder ir trabalhar e ganhar dinheiro. Menina, a minha infância foi andar por esse mundo fora, a trabalhar. Andava de terra em terra. Isto foi assim, com nove anos comecei a trabalhar para fora, aqui neste meio. Saí verdadeiramente da casa dos meus pais, para ir trabalhar, quando fiz os doze anos porque, até essa idade, era demasiado novo e não me davam trabalho noutros lados. Com os doze anos feitos, ia a pé para Viana, para a seca do bacalhau. Vinha a pé desde a freguesia de Mujães para trabalhar na seca do bacalhau. Sempre a pé! Depois lá arranjei uma bicicleta. Outras vezes ia no comboio, sempre fugido, para não pagar. Escondia-me no meio do povo para não pagar, saía em Darque e, depois, seguia a pé para a seca do bacalhau”, recorda com um sorriso envergonhado, como quem admite a malandrice. “E tempo para brincadeiras continuei a ter pouco. Trabalhava fora de horas… minto, eu trabalhava era de sol a sol. Isso, antes de ir trabalhar nas obras do Estado. Depois, aí, eu só trabalhava oito horas, mas ainda assim, sábados e tudo. E, nessa altura, já eu andava a trabalhar de pedreiro. Lembro-me de os colegas mais velhos atirarem a massa[2] por cima de mim. Gozavam comigo o quanto queriam! Isso até eu já ser homem. Depois, quando eu já era um homem feito, já não me gozavam, já me tratavam como um deles. Lembro-me que nesse tempo, trabalhei na construção destas escolas que foram feitas. Também me lembro que o patrão disto era o Faria Delgado. Ele tinha essa fábrica, agora caída, ao entrar a ponte de Viana. Ele tinha um barracão, onde se fazia a serração das madeiras e, depois, tomou conta desses trabalhos de construção das escolas. Fizeram escolas em Mujães, em Vila de Punhe… praticamente em cada freguesia fizeram uma escola e eu fui trabalhar nessas construções. Mais tarde, também, fui para Braga. Fui para são Lázaro e para as freguesias vizinhas, São Pedro, São Mamede e também fui para Trás-os-Montes. Olhe, aí, estive em Macedo de Cavaleiros, em Freixo de Espada à Cinta, em Montalegre… lembro-me que estive numa freguesia que se chamava Arandela. Era uma freguesia meia deserta, porque naquele tempo as estradas não eram nenhumas… essa freguesia tinha uma venda[3] que vendia assim umas mercearias para aquele povo, mas só abria ao domingo e à quarta-feira e, mesmo assim, por poucas horas… A cobertura tanto da mercearia como daquelas casas, eram de palha de centeio ou de trigo… as casas eram de pedra, o chão em terra batida e a cobertura era feita com umas traves de pinheiro, cobertas de palha. Nós chegamos lá a andar, nessas casas, a reparar essas coberturas feitas de palha de trigo ou centeio e depois colocávamos terrões em cima. A água da chuva caía em cima dos terrões e chegava à palha, que como estava compactada, escorria pela cobertura abaixo e não deixava que chovesse dentro de casa. Não havia gota de água da chuva que entrasse dentro de casa. Mais tarde, andamos a trabalhar nas mesmas casas, a substituir aquela palha por telha portuguesa… só depois é que apareceu a telha francesa, que vinha de Marselha. Naqueles telhados, com a telha nacional, às vezes, fazíamos umas maroteiras. Como não tínhamos dinheiro, metíamos ali uma pedrinha entre as telhas, para que chovesse dentro de casa e para que o patrão nos voltasse a chamar, para fazermos a reparação… Olhe, pela Páscoa, quando eu ainda era rapaz, andava a caiar, a pintar as casas de branco, e, de vez em quando, ia com um pau a ‘chocar’ as telhas. Depois, dizia assim ao patrão da casa: ‘olha ali tantas pingueiras’! A um escudo cada telha remendada, eu lá fazia uns cinco ‘merreizinhos’ e já ia todo contente. Já tinha dinheiro para a Páscoa”, relembra com uma grande gargalhada. “Depois, também andei por Fafe e Santa Maria da Feira… andei por esses sítios todos. Fui por esse mundo fora, tinha de ser assim! Olhe, quando andei por Trás-os-Montes, no verão, era para trabalhar. Na época do frio, ali por altura do Natal, vinha a casa. De resto andava por fora, sempre na construção. Também cheguei a ser carpinteiro de cofragens, para obras grandes. Na verdade, onde houvesse trabalho eu ia, mas isto foi antes de fazer dezoito ou vinte anos, antes de ir para a tropa. Depois de vir da tropa, onde acabei de aprender a ler melhor um bocado, também andei cá nas obras, mas, aí, já foi por pouco tempo”, afirma António. “Nessa altura, lembro-me que, para mim, era sempre tudo tão diferente! Íamos para uma terra e era tudo diferente. Íamos para outra terra e era tudo diferente, também. Tudo era diferente de terra para terra. Nas outras terras, onde eu andei, não falavam bem como nós falávamos. Nós até tínhamos uma linguagem própria. Falávamos, entre nós, um ‘patuá[4]’. Falávamos como pedreiros e falámos um ‘patuá’ próprio. Os meus parceiros, nas obras, falavam nessa língua e, no princípio, eu não os compreendia. Então fui apanhando algumas palavras e, ao fim de uns quatro meses, já conseguia falar quase tão bem como eles… esse tal ‘patuá’ só do nosso Minho. Não me lembra agora a zona de onde era essa linguagem, sei é que a falávamos aqui no Minho. Era uma linguagem que os pedreiros usavam. Também ouvia outras falas, por exemplo em Trás-os-Montes, mas que não eram o ‘patuá’. Lá, diziam, por exemplo, ‘Ó Maria traz o macho à rédea’ que era como quem diz: ‘Ó Maria traz o burro por uma corda. Ou diziam ‘Maria vai passar o naguelho’, ‘naguelho’ era uma corda, uma cordinha. Mas isto não era patuá nenhum, era lá a língua deles, era a forma de falar dos trasmontanos… agora nós, nós é que tínhamos um patuá especial… falávamos assim, em código, para que outros não percebessem o que estávamos a dizer. Por exemplo, para dizermos ‘a patroa está a ter conta em nós’, dizíamos ‘a morona que sepateia foca-se na pesteneza’. ‘Morrão’ era patrão, ‘arião’ era ‘avô’, ‘ariona’ era ‘avó’, ‘o zum’ era ‘filho do patrão’, ‘a zum’ era ‘filha do patrão’, ‘a zum que sepateia peliquenta granjoleira’ era ‘a filha do patrão anda de bebé’, ‘a zum que sepateia peliquenta granjeleirissima’ era ‘a filha do patrão, que anda de bebé, tem a barriga muito grande’. ‘Azeite’ era ‘martelo’, ‘bacalhau’ era ‘estoque’, o ‘pão’ era ‘flavim’, as ‘couves’ eram ‘orelhas de mula’… o dinheiro por exemplo, uma ‘nota de cinquenta escudos’, e nós nunca tínhamos nenhuma, era ‘alface’, a ‘nota de vinte escudos’ era ‘folha verde’, a moeda de ‘dez escudos’, que existia muito, era uma ‘penembula’, ‘meia penembula’ eram ‘cinco escudos’, ‘milheiro’ era ‘dois mil e quinhentos’ e ‘bugalhos’ era o nome que dávamos ao ‘dinheiro pequeno’”, acrescenta, como quem recita um dicionário. Gaulle, Pompidou e l’Hôtel de Ville Assim se passaram as bodas de prata da vida de António. Sempre rodeado de trabalho, sempre sem medos ou receios, sempre na posse de um tipo de fibra, tão nortenha, cheia de pequenos detalhes, peripécias e grandes curiosidades. “Depois, até à idade de vinte e cinco ouvinte e seis anos, fui para a cidade de Lisboa e fui para Aveiro, para a fábrica do papel… Eu, verdadeiramente, só vivi bem já depois dos meus vinte e cinco, vinte e seis anos. Eu também fui um bocado malandro… Por exemplo, na cidade do Porto, fui um vadio. Lá e em Lisboa. Eu ia para o Porto ou para Lisboa e não conhecia nada. Ia com os olhos fechados, mas lá me desenrascava… Na verdade, trabalhei em Lisboa, nem sequer um ano… trabalhei lá na fábrica do tabaco e nunca tive um dia de desconto. Descontava e, esses patrões, não entravam com o dinheiro para a segurança social. Por isso é que quando fui para a reforma, não apanhei nada. Trabalhei para muitas senras e nenhuma delas meteu um tostão na segurança social… e foi por isso que depois, mais tarde, decidi ir para a França e para a Bélgica. Praticamente, casei e emigrei logo a seguir. Pronto, eu tinha aí uns 28 anos e já era casado, quando emigrei”, afirma. A minha esposa chamava-se Irene. Fomos casados por cinquenta anos. Faltava um mês para fazermos as bodas de ouro quando ela faleceu… olhe, tinha setenta e dois anos. Ela, por volta dos trinta, começou a ter problemas no coração. Era uma mulher muito trabalhadora. Era, até, guardada de mais para o dinheiro. Às vezes preferia guardar em vez de comprar as coisas para a casa… lembro-me que, antes de emigrar, ainda cheguei a trabalhar, por pouco tempo, numas quintas de uns fidalgos. Uma era do Dias de Sousa, era a Quinta do Senhor do Bom Fim. O nome que estava escrito, lá dentro da quinta, era Quinta do Paço, mas como tinha uma estátua, cá fora, do Senhor do Bom Fim, a Quinta ficou assim conhecida. Penso que agora já nem sequer existe, tiraram o Senhor do Bom fim de lá. As outras, eram do Diogo Teixeira. Eram a Quinta da Seara, que fica por trás da Igreja de Vila de Punhe, a Quinta do Monte Verde e a Casa da Bouça. Lá trabalhava-se e de que maneira! Eu, lá, fazia tudo o que eles precisavam. Trabalhava no campo, trabalhava com azulejos, também, fazia um pouco de tudo… Essas quintas eram todas de gente que tinha emigrado para o Brasil e que tinham trazido de lá o dinheiro. Eu, a certa altura, pensei para mim: ‘deixa-me ir por aí fora’, e foi aí que emigrei. Ainda estive na Espanha, em Vigo, mas foi pouco tempo, antes de ir para a França”, esclarece. “Lá fora, como já era casado, tinha de dividir o dinheiro a meio com a minha esposa. Mandava metade do dinheiro que ganhava para cá, para a minha mulher, e ficava com outra metade para mim. Em sete anos, mais ou menos, arranjei a vida e juntei o suficiente para comprar um terreno. Em França, trabalhava no mesmo: trabalhava nas obras. Fui para lá trabalhar para o meio dos italianos, árabes, franceses, mas no meio deles dava cartas. Durante esse tempo, nunca cheguei a trabalhar com portugueses e era sempre o melhor… também sabia falar uma coisa ou outra e pronto, isso ajudava. O italiano até era um bocadinho fácil, mas não posso dizer que aquilo era tudo fácil. As outras línguas às vezes eram difíceis, mas a gente, querendo, aprende depressa meia dúzia de coisas… as ferramentas, por exemplo, foi uma coisa que tive logo de aprender o nome. Ai, ainda lá estive uma dúzia de anos. Na verdade, nesse período não estive só na França. Também ia para a Suíça, depois, contratavam-me para França e também me contratavam para ir para outros lados, mas era a França quem mandava mais em mim. Só em Paris vivi sete anos, mas cheguei a ir para as fronteiras com a Bélgica e com a Suíça… olhe menina, na Suíça, até fui operado aos ouvidos, por causa de uma constipação que apanhei devido a uma corrente de ar”, recorda. Os tempos em França haveriam de se tornar memoráveis para António. Os trabalhos em grandes obras, os encontros imediatos com figuras de grande relevância política da época, como Charles de Gaulle[5] ou Georges Pompidou[6], solidificaram-lhe outras reminiscências curiosas que, seguindo a linha do novelo, António se orgulha em contar. “Marcou-me muito ter de emigrar para a França. Fui para França e andava lá sozinho. Estava lá o ano inteiro. Agora, os que trabalham em França, como eu trabalhava naquela época, vêm cá ao fim de um mês ou dois. Eu, nesse ano inteiro, andava de terra em terra, não tinha a minha mulher comigo… mas ela também se governava bem, aqui em Portugal, e ganhava algum dinheiro. Olhe, nunca gastou um tostão daquele que eu lhe mandava. Foi assim que o juntamos… Eu, lá em França, também passei muito frio. Lá, vivíamos em barracas do estado. Isso é que era duro! Ter de passar, nas barracas, aqueles invernos frios! Ainda assim, comparadas com as condições de alguns hotéis, aquelas barracas do estado, até eram coisa boa. Aquilo, pronto, eram as barracas que o estado tinha para os trabalhadores que trabalhavam nas obras do estado. Mas, olhe que até eram bem feitas. Tinham caixa de ar e tudo! Não tinham quarto de banho, mas tinham sanita. Tinham onde mudar de roupa, tinham armários e camas, até eram bem equipadas. E até era melhor ficar assim do que em alguns hotéis. Os hotéis de lá não eram como os de cá. Não havia onde fazer a vida[7]. Não havia onde lavar a cara… não havia nada… era uma pia, onde se lavavam meia dúzia de pessoas, era tudo a correr e a fugir para ir trabalhar. Por exemplo, quando vivia em Paris, vivia num quarto, num hotel. Esse hotel não tinha quarto de banho. Tinha uma sanita que dava, aí, para umas dez pessoas, por cada piso. Lá, um hotel com quatro andares, não podia ter mais pisos, se não tinha de ter ascensor. Por andar, tinha um lavatório e uma sanita para dez pessoas. Tínhamos de levar água, num balde, para se deitar na sanita e mesmo para tomar banho não havia nada! Ainda por cima, como os edifícios eram baixinhos, sempre que ‘tocavam’ na margem do rio Sena, aquilo, começava a pingar a humidade e entrava frio por todo lado”, recorda. “Quando ia para fora de Paris, andava de terra em terra, aí tanto ficava em hotéis como em barracas. Cozinhar é que cozinhávamos poucas vezes. O patrão dava-nos dinheiro para comer. Esse dinheiro, que o patrão nos dava, ainda sobrava e dava para tudo. Dava para os cigarros, dava para o vinho, que a gente bebia por fora. Assim, o que a gente ganhava de ordenado era tudo aforro! Eu, naquela altura, até pensava que era só em Portugal que os hotéis não tinham quarto de banho, mas até nos grandes ‘châteaux’[8] quase não havia quartos de banho, onde as pessoas se pudessem lavar. Veja bem que quase nem os havia nesses palacetes. Numa cidade daquelas, naqueles ‘châteaux’, onde viviam os ministros… Olhe, eu cheguei a trabalhei na casa onde vivia o Pompidou, era a casa de família dele, um ‘château’ particular, mas nesse já tinha casa de banho. Nós, aí, nesse ‘château’ fazíamos o trabalho mais por fora! Esse foi um prédio valente! Tinha a polícia ali à porta e tudo! Não se entrava lá assim às boas. Tinha guarda por todo o lado! Ele era um bom senhor, assim, amorenado. Morreu o Charles de Gaulle e depois quem mandava era o Pompidou. Eu com o Pompidou nunca falei, mas cruzava-me muitas vezes com ele e com o Charles de Gaulle. Cheguei a conhecer os dois! Havia, nesse ‘château’, umas salas maravilhosas com fotografias e quadros, lembro-me bem”, afirma. No fundo, o que eu fazia era restaurar as casas e esses ‘châteaux’ que tinham sido destruídos pelas granadas da guerra. Às vezes eu era o encarregado, levava os homens comigo e lá andávamos. Lembro-me de muitas vezes, eu e os meus colegas, conversarmos sobre esses tempos da guerra. Esses eram, muitas vezes, os nossos temas de conversa… olhe, trabalhei na rua do Hotel de Ville[9], que se chama ‘place de l’hôtel de Ville’, a reconstruir casas que também tinham sido destruídas pela guerra e, por vezes, encontrávamos uns pacotinhos de açúcar escondidos nas paredes das casas. Às vezes, dávamos por uns certos buraquinhos nas paredes, onde encontrávamos esses tais pacotinhos de açúcar escondidos. Estavam lá desde os tempos da guerra. Estavam lá escondidos, nessas paredes antigas, e, olhe, nós ainda os aproveitávamos. Aquilo era açúcar feito de beterraba. Eu gostava de comer aquilo”, acrescenta com nostalgia. “Sabe, nas zonas fora de Paris, por vezes eu ia para lá, via as pessoas a semear beterraba. Via os portugueses a irem para lá ganhar um mês por fora[10]. Pagavam bem e eles lá iam! Nessa altura, já era tudo feito por máquinas. Arrancavam, desenterravam e, depois, com outra máquina, carregavam para os camiões. Depois, os camiões lá carregavam aquilo, a beterraba, para os barcos, que levavam a carga para moer. Eu, a certa altura, trabalhei numa zona onde e havia um monte, assim como este[11], e via os barcos a subir pelo rio, quase monte acima e ficava louco a ver aquilo! Gostava de ver os barcos a subir aquela montanha e de ver outros a descer… depois, numa vila, onde tinha duas pontes ou três, os barcos atracavam para ensilar a beterraba”, afirma. “Isso até era bonito de ver, mas eu, no fundo, estava lá pelo dinheiro. Fui para lá para conseguir ganhar dinheiro. Eu não gostava de estar lá. Nunca lá quis construir casa. Não gostava daquele ambiente. Eu até era contrário àquele ambiente. E mesmo na Espanha, onde também estive, também não gostava. Eu fui daqui, fui criado num outro ambiente! E pronto, aquilo lá não era igual, não gostava do ambiente de lá. Olhe, por exemplo, aqui eu podia estar num banco de jardim, em Viana, a namorar com uma moça e se lhe desse uma beijoca, vinha logo a polícia e prendia-nos. Lá, aquilo era uma vergonha! Ó meu Deus! Lá podia-se tudo! Aquilo lá, realmente… Olhe, não gostava”, acrescenta. O canto do canário e a vida de uma abelha mestra Com mais de meio novelo, bem desenrolado, já com os filhos nascidos e com a vida financeiramente mais estabilizada decide regressar à terra, à família, à novidade da descoberta de gostos e dos seus interesses. “Quando voltei para Portugal continuei a trabalhar. Aqui, quando vim, trabalhei por minha conta, tratava eu os negócios. Lá fora ainda fazia, assim, umas obras importantes, eram obras maiores. Aqui eram obras mais pequenas… nessa altura eu já tinha os filhos pequenos. Isto foi assim, eu casei em 1960 e, em 1962, nasceu a primeira filha, uma rapariga… Não, a primeira filha nasceu em 60 e a segunda em 62. Em 65 nasceu o rapaz e depois, em 67, nasceu a última, a mais nova. Em sete dos anos em que estive fora comprei o terreno fiz a casa. Nasceram os meus quatro filhos e, depois que vim, não tivemos mais nenhum. Pronto, quando regressei, nos princípios trabalhei muito. Sempre na construção civil e na lavoura de casa. Cheguei a comprar um terreno, um terreno muito bom e tinha os animais. Tinha uma vaquinha… ia buscar mato… ia buscar tudo… depois colhíamos umas batatas… semeávamos muita coisa! Colhíamos uma pipa de vinho, colhíamos milho, feijão trazia de lá, desse terreno, um bocado de tudo”, recorda. “Ainda criei pássaros. Fui um criador de canários. Também tinha patos e galinhas. Gostava muito dos patos e, claro, gostava dos canários e dos coelhos também. Mas o que eu gostava mesmo muito de ter em casa eram as abelhas. Essas, adorava mesmo! Gostava de as ver no mel, trocava-lhes aquilo. Aprendi as coisas praticamente sozinho. Ainda comprei um livro, mas fui aprendendo sozinho porque o livro dizia pouco. No princípio ainda aprendi por lá, pelo livro, qualquer coisita, mas, entretanto, pensei: ‘vou fazer uma rainha, uma mestra e vou fazê-lo eu!’. Já tinha visto os antigos a fazer. Eles faziam assim: metiam meia dúzia delas[12] num copo e escolhiam dali a maior. Achava eu que aquilo não podia ser! Quando comprei o livro percebi que elas demoravam uns dias para nascer, outras já precisavam de mais dias, as coisas tinham mais lógica, mas, ainda assim, não dava tudo certo. Com o tempo fui aprendendo várias coisas, como o peso que pode ter cada colmeia, a duração de uma rainha, se o macho ferra ou não. Ainda tive muitas colmeias. Ai, tive bastantes! Tive umas dez ou doze colmeias, mas, lá em casa, ninguém gostava daquilo. A minha mulher então não gostava nada das abelhas. Olhe que as abelhas eram um passatempo do qual eu gostava muito!”, acrescenta com evidente saudade! “Ao longo da minha carreira, nunca pensei em mudar de vida. Quando estava lá fora só pensava em ganhar dinheiro para fazer cá uma casa e vir embora de lá. Eu sempre pensei que não queria que os meus filhos passassem aquilo que eu tive de passar. Olhe, eu lá não tinha tempo livre, quase não tinha tempo para dormir. Não havia amigos… hoje estava com uns, amanhã ia trabalhar com outros, não dava para fazer amigos, mas cá tinha bons amigos. Alguns deles, se calhar a maioria, já faleceram. Um deles, que era meu bom amigo, partiu cedo… até digo que a partida dele me deixou um bocadinho chocado. Aquilo custou-me… Sabe, mesmo quando vim para cá ainda trabalhava muito, mas já podia viver melhor um bocado. Não tinha muitos passatempos, mas às vezes ia com esses amigos ver umas bandas de música, por exemplo. Estávamos lá, numa esplanada, e cantávamos cantigas uns aos outros. Também cantávamos às raparigas, a este e àquele. Fazíamos como se fazia no tempo dos mais velhos. Lembrei-me agora de uma que cantávamos assim: ‘Menina estas à janela, gostas muito de olhar quem passa não venhas para a minha beira que à minha beira é uma desgraça!’ E isto era tudo inventado por nós! Olhe, cantávamos assim. Eram umas tutorias todas, assim inventadas umas nas outras”, relata, com um sorriso. “Ai, e lembro-me bem das festas! Pelo Natal cantávamos as janeiras. Juntos, fazíamos uma volta e íamos a cantar pela aldeia. A festa que eu mais adorava, ali nas Neves, era a festa de Nossa Senhora das Neves, era uma festa muito grande. E ainda hoje o é! Também nos juntávamos e cantávamos ao desafio uns com os outros. Agora, isso já quase que acabou, já não se canta nada, já quase não existe… antes, ainda ensinava os jovens a cantar e contava-lhes histórias e maroteiras, ponha-os a rir, mas os jovens de agora já não querem muito ouvir, deixam-nos ficar para trás…”, acrescenta em jeito de lamento. “As pessoas mais importantes para mim eram as pessoas mais velhas do que eu. Havia um senhor chamado Santos, havia outro chamado Armando Dias e eles é que me ensinaram, em novo, a forma de como eu havia de trabalhar… e de maneira que, os conselhos que melhor levei, foram os conselhos dos velhinhos. O meu avô, o primeiro homem que me deu os melhores conselhos, contava-me assim algumas histórias. Contava umas boas e outras más. Morreu velhinho, mais velho do que eu, com 99 anos. Dizia-me ele: ‘olha rapaz, um homem enganado pelos amigos é enganado por isto e por aquilo. Um homem, para emprestar dinheiro ao amigo, precisa fazer cuidado porque os amigos, parecem uma coisa e não são e muitas vezes enganam-nos’… sabe menina, quando eu era mais novo, as coisas pareciam-me mais importantes. Agora, com esta idade que tenho, já pouco é importante. O gosto que mais apreciava era poder aprender coisas novas e cuidar das minhas coisas. Por exemplo, uma arvore que não dava fruto, eu punha-a dar outra furta de outra qualidade. Até punha uma roseira a dar uvas! Muitos vão dizer que não é possível, mas foi! Era isso o que eu mais gostava de fazer… hoje, o que mais desejo é que os meus filhos vivam bem a vida e que sejam alguém, pessoas direitas. Ensinei-os a serem boas pessoas, pessoas sérias, para poderem ser alguém na vida. Quis sempre que fossem para a escola para aprenderem mais do que eu, para poderem ter oportunidades diferentes daquelas que foram as minhas… para poderem ter uma vida um bocado diferente”, conclui. Estimado leitor, chegados ao final deste novelo, sem que tenhamos ainda vislumbrado a outra ponta, resta-nos muito mais do que um relato, já de si tão intenso, tão complexo e tão rico. Ficar-nos-á, tal como é propósito do “Incríveis Pessoas Comuns”, uma versão da história de António, que nos demonstra, através de um discurso tão ininterrupto e tão querente, muito mais do que uma simples vocação para o reconto ou para o relembrar, como se nossas fossem, das histórias e memórias suas. Permita-nos, caro leitor, que perpetuemos, bem declarado, o exercício de privilégio que experienciamos na produção desta bioconversa. Esperamos que a sua leitura lhe tenha possibilitado a representação de Homem bom, cujas memórias atingem um valor próximo ao do incalculável. [1] A expressão “amparar meninos” remonta a uma época em que os nascimentos ocorriam predominantemente em casa, assistidos por mulheres da comunidade que exerciam funções semelhantes às das atuais parteiras. Munidas de conhecimento popular, transmitido de geração em geração, e dotadas de grande coragem, estas mulheres desempenhavam um papel crucial no auxílio ao parto dos bebés. [2] Massa ou argamassa de cimento, também conhecida simplesmente como massa de cimento, é um composto utilizado em construções civis e é um dos materiais mais essenciais na edificação. Consiste basicamente numa mistura de cimento, areia e água; [3] Mercearia. [4] António menciona o “patuá” como um subtipo de linguagem ou dialeto, predominantemente utilizado pelos pedreiros minhotos, sobre a qual não encontramos outras informações. [5] Charles de Gaulle foi um general e estadista francês que liderou as Forças Francesas Livres na Segunda Guerra Mundial e presidiu o Governo Provisório da República Francesa de 1944 a 1946. Fundou a Quinta República Francesa e foi presidente de 1959 a 1969. De Gaulle é lembrado por manter a independência da França, especialmente em relação aos Estados Unidos, e por transformar o país numa potência nuclear; [6] Georges Pompidou foi um político francês, presidente de França de 1969 a 1974. Antes disso, ele foi primeiro-ministro de 1962 a 1968, no governo de Charles de Gaulle. Conhecido pelas suas políticas de modernização, criou grandes grupos industriais e lançou o projeto do comboio de alta velocidade (TGV). Promoveu a entrada do Reino Unido na Comunidade Económica Europeia (CEE) e é hoje lembrado pelo Centro Pompidou, um museu de arte contemporânea em Paris. [7] António utiliza a expressão “fazer a vida” para se referir à impossibilidade de realizar atividades básicas de higiene pessoal em condições apropriadas de privacidade e salubridade. [8] “château” (plural: “châteaux”) é uma palavra francesa que se refere a um castelo ou uma grande casa senhorial. São edifícios frequentemente associados à nobreza e à aristocracia e podem variar tanto no tipo como na época de construção. A palavra pode ser utilizada para designar desde fortalezas medievais até palácios renascentistas ou outros tipos de residências mais luxuosas e exclusivas; [9] O Hotel de Ville é um edifício histórico que serve como sede municipal da cidade de Paris desde 1357. A construção original, com a atual imagem arquitetónica, iniciou-se com Francisco I em 1535 e foi concluída em 1551. A ala norte foi edificada entre 1605 e 1628, durante os reinados de Henrique IV e Luís XIII. Em 1871, o edifício sofreu com um incendio que assolou parte de Paris, tendo sido posteriormente reconstruído entre 1874 e 1882, mantendo o design original e modernizando os interiores. Além de albergar o conselho local e os gabinetes dos presidentes da Câmara de Paris, a Câmara Municipal também é utilizada para receções e eventos públicos; [10] António utiliza a expressão ‘ganhar um mês por fora’, para se referir a um trabalho extraordinário que era aproveitado, pelas pessoas, de modo a conseguirem obter um rendimento adicional, fora do âmbito do seu emprego quotidiano. [11] Pequena montanha, pouco inclinada. [12] abelhas
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