
Uma bioconversa com Brígida Palma Nunes Franco.
Brígida Palma Nunes Franco, utente do Centro Paroquial e Social de Lanheses, nasceu no ano de 1934, em Lanheses, Viana do Castelo. Única filha de um grupo de seis irmãos haveria de ser criada pelos avós maternos, depois de uma grave doença a ter acometido com apenas quinze meses de idade. Regressada a casa dos pais, fez-se adulta em idade incerta, “empurrada” pelas responsabilidades dos cuidados que prestava aos seus. Trabalhou no campo, cuidou da sua mãe doente e abdicou estoicamente de um casamento que desejava. Ao longo da vida, cultivou uma paixão pela poesia e robusteceu na oração, a sua fé em Deus. Embora tenha deixado para trás o sonho de catequizar em África, guarda-nos para um futuro imediato, quase presente, a declamação de outros versos seus. Na ausência de algo, a fé e a resiliência Brígida Palma Nunes Franco nasceu no lugar de Santo Antão, na freguesia de Lanheses, a 8 de agosto de 1934. De origens humildes, a sua família era composta pela mãe, pelo pai e por seis irmãos, sendo Brígida a segunda mais velha e a única rapariga. Em tempos difíceis, marcados pelo implementar do regime do Estado Novo[1] onde a repressão e sobretudo a pobreza ainda tinha uma forma e significados diferentes daqueles que lhe atribuímos na contemporaneidade, faltava um pouco de tudo a quase todos e a Brígida, uma pequena bebé de colo, faltava também a saúde. Com apenas quinze meses de idade, contrai uma enterite bacteriana que coloca a sua tenra fragilidade, tão precocemente à prova, numa luta natural para se manter viva. “Dizem que fiquei só pele e osso. Os meus avós maternos, que eram pobrezinhos, tiveram pena de mim e da minha mãe e levaram-me para a casa deles… Como me lembro da minha avozinha! Eles enchiam-me de beijinhos e abraços, eram excelentes pessoas para mim”, afirma. Brígida haveria de residir, “também pela necessidade dos cuidados”, com os seus avós até aos sete anos de idade. “Infelizmente o meu avô materno faleceu quando eu ainda tinha quatro anos, mas lembro-me de como ele me chamava, quando terminava o seu café, para eu comer aquele ‘restinho’ de açúcar que ficava no fundo da chávena. Depois, quando eu tinha sete anos, a minha mãe foi-me buscar, para casa, porque estava com uma gravidez de risco, de gémeos. Eles nasceram com cinco meses e meio de gestação, mas acabaram por falecer pouco tempo depois de nascerem. Até aos sete anos acabei por não ter muito contacto com a minha família”, acrescenta, com carinho e nostalgia. Regressada a casa, após tanto tempo ao cuidado dos avós, Brígida via-se agora rodeada por três irmãos, num frenesim ao qual não estava habituada. Esta nova realidade resultaria numa certa dificuldade de adaptação, pois não lhe era costume a presença dos três irmãos rapazes. “Não estava habituada a lidar com rapazes e, em casa, tinha três irmãos que não sabiam lidar com raparigas”, justifica. A relação com a mãe era também distante, exigente e pouco afetiva. “A minha mãe trouxe-me de volta, da casa dos meus avós, para eu cuidar da nossa casa e nunca me chamou de menina… sempre me tratou como uma mulher”, adita. O seu pai, um veterano da Guerra Civil de Espanha[2] que “trabalhava fora”, haveria de partir cedo, tinha Brígida apenas dez anos, e, por esses motivos, também nunca lhe fora muito presente. A instrução escolar de Brígida não era uma prioridade amplamente percecionada pela família, talvez influenciada por outra necessidade ou pelo contexto difícil que se vivia. Desse modo, desde a “primeira classe” e aculturada pela exigência da sua mãe para que “cuidasse da casa”, Brígida sentia dificuldades em frequentar a escola. “Na primeira classe, faltei muitas vezes porque a minha mãe queria que eu cuidasse da casa. Quando entrei na segunda classe, a minha professora puxou muito por mim e dizia que eu era uma aluna muito boa. Consegui terminar a terceira classe na Escola Primária de Lanheses[3]. A disciplina que nunca gostei foi matemática, mas, de resto, gostava de fazer tudo. Lembro-me dos nomes das minhas professoras da segunda e da terceira classe. Uma era a professora Clotilde e a outra era Maria José, que foi presidente da Ação Católica[4]”, recorda. Esta sua referência a uma matriz cristã católica, não será, tal como veremos mais adiante nesta Bioconversa, um apontamento inocente ou isolado. A infância de Brígida haveria de evoluir em passo de marcha, pautada pelos ritmos da escola, principalmente do trabalho feito sem tempo para brincar. “Nunca tive tempo para brincar. Tentava fazer umas bonecas de trapo, mas tinha de esconder os trapos por trás de uma caixa, para a minha mãe não ver, senão ela batia-me”, afirma. E até mesmo os momentos de festa na aldeia ou na paróquia, eram ocasiões de trabalho e não de diversão. “A minha mãe encaminhava-me para as festas da igreja, mas era para trabalhar. Lá faziam os fatos de teatro, arranjávamos uns tostões para comprar a bandeira da Ação Católica, para arranjar roupa para crianças que iam ser batizadas. Era assim que ocupava o meu tempo… lembro-me que, na escola, fazíamos festas da Primavera, onde escrevemos um poema dos ninhos e também fazíamos celebrações do Dia da Mãe, onde eu fiz um poema dedicado à minha mãe”, acrescenta com orgulho. Resignada, mas dona de um espírito aguçado e resiliente, Brígida guarda boas memórias de algumas dessas festas, em particular as festas escolares que lhe haveriam de estimular uma forte sensibilidade poética, de estilo livre e popular. A escolha difícil entre a emoção e o dever Para Brígida, a vida adulta começara algures, numa idade incerta. Ela que aos nove anos já se prestava como catequista paroquial. “Ensinei a catequese dos nove até aos vinte e sete anos, mas depois tive de largar tudo para cuidar da minha mãe”, afirma. Por tradição, incumbência, sorte ou sina, Brígida haveria de trabalhar e encontrar o seu sustento nas lides da casa e no trabalho do campo, dedicando-se à lavoura, à criação de animais, como galinhas e coelhos, ao cultivo de hortaliças e outros produtos agrícolas, que depois consumia ou vendia a terceiros. “Foi aí que ganhei o meu dinheiro. Nunca fui para o estrangeiro nem tirei cursos. Parei de trabalhar tinha eu sessenta e dois anos, por invalidez”, sintetiza. Embora tenha vivido um relacionamento sério aos vinte e oito anos, idade com a qual a sua mãe finalmente permitiu que namorasse, Brígida nunca se casou. O enamorado, de nome Custódio, havia emigrado para França e pretendia casar-se com ela por procuração. No entanto, o sentido do dever de cuidar da mãe, uma viúva agora doente, pesou mais na decisão de Brígida que, estoicamente, negando, se comprometeu com a missão. “A minha mãe não me deixava namorar, era só escrever cartas para as comadres. No entanto, como o rapaz era muito respeitador, muito bem-educado, lá me deixou namorar. Ele queria casar-se comigo por procuração, mas como senti a responsabilidade de não deixar a minha mãe, uma viúva doente, sozinha, disse-lhe que não casaria com ele. Custou-me muito, porque gostava mesmo muito dele”, afirma sem reservas. Depois de passar uma grande parte da vida comprometida numa regra própria, quase monástica, dedicada aos seus, à oração, Brígida encontraria também lugar e mais alegria na liberdade da poesia. Com uma frequência quotidiana verdadeiramente impressionante, através de uma capacidade de improviso única, séria e aguçada, que faz lembrar a destreza dos cantadores ao desafio[5], Brígida compõe poemas que, para lamento público, apenas regista nas linhas da memória. Ela que, em diversos aspetos da sua vida, faz lembrar um outro poeta nascido na outra ponta de Portugal, o vila-realense António Aleixo[6]. Hoje, a oração e a poesia que, quando faz por declamar, tanto e tantos alegra, fazem parte da sua vida, da vida do Centro Paroquial e Social de Lanheses, onde reside, e representam talentos, maduros e trabalhados, que Deus lhe concedeu. No Norte, algo de António Aleixo Em retrospetiva, Brígida acredita que os desafios que enfrentou lhe ensinaram lições valiosas sobre a vida e que lhe servem de mote para a oração e inspiração poética. “Fui aprendendo, sempre à minha custa, que a vida é dura e que é preciso enfrentá-la… a lição mais importante que aprendi foi a importância da responsabilidade e do cuidado com a família. Desde cedo, tive de pensar nos meus irmãos e na minha mãe, especialmente em momentos de doença e dificuldade. Eu tinha de cuidar dela e não sabia como…. Naquela época, a minha mãe estava doente e eu já tinha vinte e oito anos… olhe, devo muito à minha avozinha. Foi ela que me ensinou tudo. Foi ela que me ensinou a fazer o sinal da cruz, a ir à igreja e, quando era pequena, até me acompanhava até à escola“, afirma. Antes de ingressar na Estrutura Residencial do Centro Paroquial e Social de Lanheses, Brígida ainda frequentou Centros de Dia, em outras IPSS. “Antes de vir para o Lar de Lanheses, frequentei dois Centros de Dia. Estive hospitalizada durante trinta e dois dias por causa de uma pneumonia. Depois, uma amiga minha quis levar-me para o Centro de Dia de Cardielos, porque o médico tinha-me dito que não podia voltar a trabalhar. Eu lá fui e fiquei durante quase dois anos. Depois fui para o Centro de Dia de Santa Marta de Portuzelo, também influenciada por uma amiga, tinha eu setenta e dois anos. Estive lá durante oito ou nove anos. Depois, em 2015, vim para o lar porque a idade ia avançando e os problemas de saúde iam aparecendo”, recorda. Atualmente, Brígida, dedica o seu o tempo livre à costura e ao bordado, atividades que aprendeu sozinha, mas não dispensa a oração e a televisão. “A minha mãe nunca me ensinou, mas desde muito pequena que eu fazia camisolas e mantinhas… também gosto de ver televisão, especialmente o canal ‘Canção Nova’, e de fazer trabalhos manuais”, afirma. Quanto à gastronomia, Brígida não se mostra requintada. “Qualquer coisa para mim está bem, não sendo salgada. O meu prato favorito, na minha casa, eram as batatas, que eram o meu forte”, acrescenta com um enorme sorriso no rosto. Como católica praticante, Brígida acredita profundamente na bondade de Deus e no bom senso do Homem. A sua fé e a defesa dos mais tradicionais valores morais, permitem-lhe uma orientação e um sábio conselho que dedica a todos, mas de modo particular aos mais novos: “Para mim, a qualidade mais importante numa pessoa é a sinceridade. Pessoas falsas, que dizem uma coisa pela frente e outra por trás, para mim, não têm valor. Aos mais novos digo para não fazerem aos outros aquilo que não gostariam que lhes fizessem”, afirma prontamente. “Eu fui feliz, sim. Quando era jovem tinha um sonho… ainda sonhava ensinar catequese às crianças em África, mas assim não aconteceu… Este, agora, seria o melhor tempo da minha vida, se não fossem as sequelas da doença. Hoje não tenho mais preocupações com a lavoura. Sempre fiz tudo sozinha, sofrendo sozinha e o trabalho era o meu entretenimento… Sempre fui obediente à minha mãe e dedicada aos meus irmãos… Eu disse-lhe, há bocado, que a minha mãe talvez me tratasse de forma ríspida, mas isso foi porque não me criou. No seu fim, foi a mim que ela se confiou. O último beijo que deu foi a mim, na hora da partida. Nunca me tinha dado um beijo antes”, acrescenta, em jeito de conclusão. É precisamente com a sua mãe no pensamento e com todos quantos possam ler esta Bioconversa que, através da sua generosidade e singularidade poética, Brígida nos permite o desenho, raro e em linhas, de letras que lhe compõem o coração: “Poema dedicado à mãe Minha mãe, palavra amada que eu guardo com devoção Numa caixinha fechada que se chama Coração. Quando no teu ventre me sentiste, Que grande a tua alegria, Estavas sempre à espera que chegasse esse dia. E esse dia surgiu para tua grande Cruz. Sabe Deus o que sofreste para me poder dar à Luz. O meu primeiro alimento foi teu peito, mãe amada, E foi com tanto carinho que me deste teu leitinho, E tudo de mão beijada. Nada quiseste em troca, o teu anseio era dar. Tiravas da tua boca para me alimentar. Os meus primeiros passos foram guiados pela tua mão, E adormeci nos teus braços, junto do teu Coração. Quando comecei a andar, foi maior a tua canseira para eu não me magoar. Estavas sempre à minha beira. Assim que eu cresci, os teus conselhos foram tantos. Criaste cabelos brancos, mas em tudo te obedeci. E sempre em cada oração, Me encomendavas a Deus e deste-me a tua bênção quando partiste para o céu.” [1] O Estado Novo em Portugal foi um regime autoritário que vigorou de 1933 a 1974, inicialmente liderado por António de Oliveira Salazar e mais tarde por Marcelo Caetano. Foi um período marcado pela centralização do poder, censura à imprensa, repressão política e uma ideologia nacionalista e corporativista. Inspirado por regimes fascistas, o Estado Novo procurou preservar as tradições e manter o império colonial português, resistindo às tendências de descolonização que ocorriam a nível global. A Revolução dos Cravos, ocorrida a 25 de abril de 1974, pôs fim a este regime e deu início à transição para a democracia em Portugal. [2] A Guerra Civil de Espanha (1936-1939) foi um conflito entre as forças republicanas, que apoiavam um governo democrático, e os nacionalistas, liderados pelo general Francisco Franco, que buscavam implementar um regime autoritário. A guerra iniciou após um golpe de estado mal sucedido contra o governo republicano, resultando em uma luta prolongada que causou grande destruição no país. Os nacionalistas receberam apoio da Alemanha nazista e da Itália fascista, enquanto os republicanos contaram com a ajuda da União Soviética e das Brigadas Internacionais, compostas por voluntários de vários países. A guerra terminou com a vitória dos nacionalistas em 1939, levando à ditadura de Franco, que continuou até sua morte em 1975. Milhares de portugueses, incluindo voluntários e exilados políticos, participaram do conflito, tal como sucedeu com o pai de Brígida. A título de exemplo, o grupo “Os Viriatos” era composto por um grupo de voluntários portugueses que lutaram com as forças nacionalistas de Francisco Franco. [3] O antigo edifício da Escola Primária de Lanheses, que Brígida frequentou, é um edifício de destacável traço arquitetónico e abriga atualmente a sede da Junta de Freguesia de Lanheses. É também o ponto de partida do Ecomuseu de Lanheses, que destaca o património cultural e natural da freguesia. No local, os visitantes podem explorar o Núcleo Museológico de cerâmica e olaria, e a exposição fotográfica permanente “Memórias de Lanheses”, que retrata a história e tradições locais. Aconselha-se a visita. [4] A Ação Católica é um movimento cristão criado pela Igreja Católica no século XX, com o objetivo de ampliar sua influência na sociedade e fortalecer a fé religiosa, baseado na Doutrina Social da Igreja. Em Portugal, a Ação Católica Portuguesa foi fundada em 1932 pelo Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira e teve um papel significativo durante o Estado Novo, colaborando com o regime. Este movimento incluía várias organizações, como o Movimento de Apostolado de Adolescentes e Crianças, o Movimento Católico de Estudantes e a Juventude Operária Católica. [5] Os cantadores ao desafio são artistas que participam em competições de improviso musical, conhecidas como desgarradas ou cantigas ao desafio. Estas competições fazem parte da cultura portuguesa, especialmente no Norte do nosso país. Durante as desgarradas, os cantadores improvisam versos em resposta uns aos outros, frequentemente com humor e sátira, acompanhados por instrumentos tradicionais como a concertina e a viola. [6] António Aleixo (1899-1949) foi um poeta português, nascido em Vila Real de Santo António e falecido em Loulé. Conhecido pela sua ironia e crítica social, Aleixo destacou-se pela simplicidade dos seus versos, apesar de ter sido semianalfabeto, tal como Brígida. A sua obra, composta principalmente por quadras, reflete uma filosofia aprendida ao longo da vida. Trabalhou como tecelão, polícia e servente de pedreiro, e ficou conhecido como o “poeta-cauteleiro” por vender cautelas enquanto recitava os seus poemas nas feiras.
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