
Uma bioconversa com Júlia Alves Gomes.
Júlia Alves Gomes, nascida a 21 de fevereiro de 1939, em Beiral do Lima, Ponte de Lima, é um exemplo de vida repleta de gratidão e trabalho árduo. Em menina, ajudava os pais na Quinta do Temporão, uma quinta na sua terra natal, sempre na posse de uma alegria contagiante. Destacou-se como cantora no coro da igreja e como aluna exemplar. Casou com João Rodrigues Mendes em 1968, com quem haveria de ter três filhos. Apesar das dificuldades, alguns infortúnios e de uma vida dura de trabalho, sempre ligada ao campo, Júlia continua hoje a cuidar da sua casa, da sua horta e dos seus animais com a mesma determinação e com o mesmo sorriso de menina, refletindo, como um exemplo, a sua maneira de ser alegre e resiliente.
Júlia Alves Gomes nasceu a 21 de fevereiro de 1939 em Beiral do Lima, uma encantadora localidade, plantada no município de Ponte de Lima, reconhecida pelos seus caminhos antigos e cénicos, pelas paisagens verdes e naturais, pontuadas por lugares comunitários e algumas casas abrasonadas, cujas curiosas histórias, merecem ser reencontradas. “Nasci em Beiral do Lima, em Ponte de Lima e sempre vivi lá. Casei lá, tive filhos lá, fiz a minha vida lá. Eu era a mais nova de sete irmãos. Éramos quatro rapazes e três raparigas. Como os meus pais trabalhavam numa quinta para uns patrões, que era a Quinta do Temporão, fiquei também por lá. Era uma quinta particular e os patrões davam o nome de Quinta de Temporão. Lá havia muitos campos, pequenos lagos, animais. Ui tanta coisa!”, recorda. Acredita-se, por supostos vestígios encontrados no local, que a Quinta do Temporão tenha sido um lugar de ocupação humana desde tempos imemoriais. A sua localização privilegiada e os terrenos férteis terão sido, com certeza, bem aproveitados por tantos quantos haveriam de habitar aquela região, ao longo dos séculos. Bem perto da Quinta do Temporão, existe uma outra quinta, a Quinta da Samoça, onde se encontra reerguida uma capela em honra do Senhor do Socorro, cuja data de fundação remete para o ano de 1578. Aconselha-se a redescoberta destes lugares de Júlia, aparentemente perdidos no tempo, com a ajuda dos habitantes locais ou do, também ele próximo, historiador J. Barbosa. Júlia haveria de nascer com um lindo sorriso bem patente. É difícil reencontrá-la sem que o sorriso não se encontre, também ele, presente. Essa característica, tão empática, faz adivinhar até à mais desatenta das pessoas, o seu grato e bondoso perfil, moldado de pequenina. “Quando era pequenininha, começava a cantar logo de manhã… olhe, até se diz que quem canta seus males espanta. Eu gostava tanto de cantar que até andei no coro da Igreja de Beiral do Lima. Ai como eu gostava de cantar! Até quando eu ia para a escola, ia sempre a cantarolar… Olhe, nesse tempo, cheguei a fazer a terceira classe na Escola Primária de Beiral do Lima e era muito boa aluna! Gostava muito de escrever e de fazer ditados e nunca fazia erros! Escrevia muito bem e as professoras mostravam sempre aos meus colegas os meus ditados. Eram tempos bonitos esses! Veja bem que eu ainda me lembro do nome da minha professora da terceira classe… chamava-se professora Ana Lavínia. Nessa altura íamos à escola, ao meio-dia vínhamos a casa comer e depois voltávamos para a escola. Eu lá comia uma sopa de leite de cabra com um bocadinho de pão ou um caldo de farinha, sempre com muitas couves, e depois voltava para a escola. A vida, naquele tempo, era muito pobre. Apesar de trabalhar para os patrões, eles nunca nos pagavam, nem em dinheiro, nem pelos bens que semeávamos. Era tudo para eles… A lição mais importante que aprendi na vida foi a de ser grata e trabalhar duro… e, acima de tudo, ser alegre”, confidencia. As tradicionais brincadeiras da infância, ao contrário das memórias bem marcadas do trabalho, apenas lhe pontuam pequenas, mas sorridentes lembranças. “Embora também tivesse de ajudar em casa, de vez em quando… quando podia, brincava muito era à Macaca… mas lembro-me de trabalhar na terra com a minha mãe, onde tratávamos das vacas e de outros animais. Não tínhamos muito, mas estávamos sempre agradecidos pelo que tínhamos… Eu lembro-me que comecei a trabalhar com sete anos, na lavoura e com os animais. Os nossos patrões viviam no Porto e, tudo o que colhíamos, era enviado para lá. Ainda me lembro do nome da patroa e do nome da sua filha. A patroa chamava-se Maria José Vasconcelos e a filha era Rosa Maria. Veja bem que ainda me lembro de ela ter nascido no dia da Imaculada Conceição, que é no 8 de dezembro. O ano em que ela nasceu é que já não sei”, declara. Da infância e da juventude, Júlia, carrega consigo boas e agradecidas memórias das amigas, das festas e das romarias locais. “Para mim, naquele tempo de infância e juventude, as pessoas mais importantes eram as minhas amigas da escola e da catequese… Ai, quando eu era jovem, gostava de cantar e sempre fui uma pessoa alegre. E muitas vezes até cantava nas festas. Olhe, tanto eu como as minhas amigas éramos tão alegres que o Senhor Padre Machado, quando nos via a ir embora do ensaio do coro, da catequese… lembrei-me agora que eu ainda cheguei a dar catequese dos quatorze aos meus vinte e oito anos… ou da missa, dizia-nos sempre na brincadeira: ‘Lá vão as louquinhas’. E nós até éramos umas louquinhas, mas com muito juizinho! Gostávamos era de ser alegres! Era a nossa maneira de ser, de viver a amizade. Eu penso que, assim, quando se vive de forma alegre, a vida é muito mais leve”, afirma. “Eu sempre fui muito alegre, mas até nem era muito de ir para as festas. Nessa minha altura até já havia umas festas, mas não eram bem como as de agora. Por exemplo, não havia conjuntos nem nada disso, havia umas bandas de música e era assim! O que havia sempre era a missa cantada, as procissões, com os andores, e a arrematação das coisas que as pessoas davam para ajudar a pagar as festas. Das que eu ia, a festa que eu mais gostava eram as Feiras Novas! Lá é que eu cantava juntamente com as concertinas! Ai, que saudades! A festa das Feiras Novas de hoje até não foge muito ao que era antigamente, essa manteve bem a tradição. Outra, das festas que havia lá perto, era a de São Lourenço, em Gondufe. Nessa festa, havia missa, procissão à volta da capela, as tascas e também havia a bênção dos animais, para quem os tinha e trabalhava no campo, para lhes dar proteção contra doenças e perigos. São festas que ainda hoje se fazem e espero que se façam por muitos anos, porque trazem alegria ao povo”, acrescenta. A troca das cartas pelo amor A vida avançava no seu passo natural e, tal como a tantos e tantas, também a Júlia, o tempo de um casamento haveria de chegar. Num dia aparentemente comum, embora mais definido do que outro qualquer, Júlia, ou o seu coração, reconheceria em João Rodrigues Mendes, um rapaz de trabalho, que ajudava numa obra em casa dos futuros sogros, o vindoiro marido. “Ele era trolha, e conhecemo-nos enquanto ele trabalhava em obras lá em casa dos meus pais, tinha eu vinte e nove anos. Ele era cinco anos mais novo… quando o conheci, eu estava prometida a outro moço. Era um moço que estava em Moçambique, porque tinha sido destacado para a guerra. Nós até andávamos a trocar cartas, mas o amor falou mais alto e acabei por casar com o meu marido. Casámos a 1968 na Igreja Matriz de Beiral do Lima e o nosso casamento foi simples, mas cheio de amor. Lembro-me bem do jantar do casamento, que foi feito em casa da minha mãe. Comemos massa de talharim com ervilhas estufadas e salada russa. O meu marido era um homem muito trabalhador e de coração bondoso. Tivemos três filhos, um deles, infelizmente, faleceu cinco dias depois de nascido. O meu filho mais velho nasceu a 13 de maio de 1969, foi logo após eu me casar e coincidiu com o dia da comemoração da aparição de Nossa Senhora, em Fátima. O mais novo nasceu a 15 de julho de 1974, pouco depois do 25 de abril… Olhe, em Beiral do Lima, que é uma terrinha habituada ao trabalho no campo, recordo-me de sabermos dessa revolução pela rádio. E para dizer a verdade eu, pessoalmente, também não senti grandes diferenças após o 25 de abril, porque a minha vida foi sempre a trabalhar e a cuidar dos meus filhos, mas sei que foi um acontecimento muito importante para muita gente no nosso país.”, afirma. Além da partida precoce de um dos filhos, ido antes mesmo de conhecer outro alimento além do sustento materno, Júlia recorda com tristeza o momento da partida do marido. “Foi muito difícil quando o meu marido faleceu. Ele faleceu a 14 de abril de 2015. Tinha uma doença ruim. Ele, nessa altura, estava internado nos Arcos de Valdevez e eu ia lá, com os meus filhos, visitá-lo, mas custava-me tanto! Isso custava-me muito. A partida dele doeu-me muito, porque ele era uma pessoa que gostava tanto de viver e gostava tanto dos filhos! Senti mesmo muito esse momento! Custou-me! Custou-me, também porque talvez é a minha forma própria de sentir as coisas, é a minha maneira de ser. Olhe, por exemplo, no Natal, na consoada, ia comer sempre a casa da minha sogra, mas não conseguia deixar os meus pais sozinhos. Então, comia com eles e só depois de eles se irem deitar, é que ia para a casa da minha sogra. Veja lá como são as coisas, tantos filhos e só eu me preocupava. Morreram os dois nos meus braços. Aconteceu assim…, mas, pronto… é a forma como eu sentia e sinto as coisas, é a minha maneira de ser”, declara na sua exemplar humildade. Apesar de se encontrar a recuperar de uma queda que lhe causou a fratura da perna esquerda, Júlia nunca deixou de trabalhar, nem tal possibilidade lhe ocorre. Cuidar da sua casa, da sua horta e dos seus animais é uma missão que pretende levar adiante, até ao limite das suas possibilidades. “Isto, da perna, foi assim: eu ia sempre até ao cemitério arranjar a campa, mas um dia ao me despedir de uma conhecida que encontrei pelo caminho, caí e acabei por partir a perna. Agora, lá vou recuperando devagar, mas vou recuperar bem!”, afirma com um sorriso. Com pouco se diz muito No seu tempo livre, Júlia, gosta de aproveitar bem cada momento que a vida lhe dá. “Gosto de ver televisão, de ver as coisas ao meu redor, ouvir a missa e dar as minhas voltinhas. Nunca tive oportunidade de viajar, mas até gostava… De comer, gosto, não sou esquisita, mas também não como muito… O que mais aprecio ainda são as coisas que o campo nos dá! Olhe, um pratinho de feijão com um bocadinho de cebolinha e muita hortaliça. Carne, pouquinha. Se for de porco, então, muito pouquinha. Se tiver galinha, então, meto também um bocadinho. Olhe menina, é do que eu gosto”, afirma. Hoje, Júlia, ao seu jeito simples e direto, aproveita a nossa conversa para confidenciar publicamente sobre outros sonhos, os de deixar, generosamente às novas e às atuais gerações, pedaços inteiros de sabedoria, nascidos do seu saber e do sabor da sua vida. “Eu, na verdade, nunca sonhei. A vida também não o permitia. A minha vida sempre foi muito focada no trabalho da terra. E eu sabia, desde criança, que o meu futuro seria dedicado à família. Quanto ao resto, era ter fé no Senhor, acima de tudo. Olhe, cuidei dos meus filhos com amor e responsabilidade. Sei que nem sempre foi fácil, mas fiz o melhor que pude para criar uma família unida. Agora, que já sou mais velha, vejo que o mais importante é ensinarmos bons valores e responsabilidade aos mais novos. Hás vezes, é tão triste ver certas notícias na televisão! Hás vezes, os jovens não querem ouvir os mais velhos, mas eu tento sempre aconselhar os meus netos. Digo-lhes que eduquei os meus filhos, os pais deles, a serem daquela forma e digo-lhes para eles aprenderem com isso também. Digo-lhes sempre para se portarem bem, para serem amigos dos seus amigos e, principalmente, dos familiares e das pessoas mais velhas. Digo-lhes para arranjarem um namorado ou namorada, mas que seja amigo e para nunca permitirem que lhes levantem a mão. Isso não! E é assim, aconselho como sou. Sou assim. Gosto de ser alegre e acho que assim a vida é muito mais leve… De que nos vale chorar? Mesmo tristes devemos sempre mostrar o quanto vale o nosso sorriso”, conclui. É desta forma tão direta, através de uma sabedoria despretensiosa, numa aula magna e intemporal sobre a modéstia, sobre o valor do trabalho e sobre a importância de viver com alegria, que Júlia nos empresta o seu exemplo. Transformando o seu sorriso num sumário perfeito, relembra-nos que, mesmo na adversidade, é ele, o sorriso, o mais humilde sinal de gratidão por este autêntico milagre que é a vida. Assim, como é seu exemplo, talvez o devamos manifestar, oferecendo-o ao outro, com a mais generosa das frequências.
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