
Uma bioconversa com Maria Josefa Pereira Verde Nogueira.
Maria Josefa Pereira Verde Nogueira, utente do Lar de Santa Rita de Cássia, da Santa Casa da Misericórdia de Caminha, nasceu em Vila Praia de Âncora, em 1937. Criada no seio de uma família pobre, viveu rodeada pelos irmãos e pela mãe, na ausência de um pai que partira antes do tempo. Desde cedo, dedicou-se à hotelaria e trabalhou na Quinta do Cruzeiro, um espaço para eventos na sua terra natal, antes de se mudar para a vibrante cidade do Porto. Na invicta cidade destacou-se pela excelência como colaboradora do Hotel Império e, mais tarde, do Grande Hotel do Porto. Aos cinquenta anos decidiu regressar a Vila Praia de Âncora onde, antes de se reformar, colaborou no Hotel Meira, uma unidade muito conhecida na sua região. Casou tardiamente, mas não tiveram filhos. Hoje, reconhece na ternura das suas sobrinhas as filhas que não teve. Demonstra-nos, com bondade, a relevância da valorização do esforço e do trabalho honesto, sem obliterar a importância da vivência de momentos felizes. Uma referência não obliterada Maria Josefa Pereira Verde Nogueira nasceu a 7 de abril de 1937, em Vila Praia de Âncora. A sua família, embora pobre, era constituída pela riqueza do carinho de sua mãe e dos quatro irmãos. A partida precoce do pai, sucedida quando Josefa tinha apenas cinco anos de idade, não lhe haveria de criar o espaço suficiente para memórias de uma figura paterna mais presente. No entanto, essa ausência não lhe oblitera a ternura pela sua grande referência. “O meu paizinho morreu cedo, mas foi por causa dele que fui catequista durante muitos anos… fiquei com a minha mãe, com cinco filhos, sendo eu a mais nova, eu tinha cinco anos e a mais velha tinha quinze anos“, informa Josefa. Em criança, Josefa não tinha muito espaço para brincar. As responsabilidades partilhadas, relativas às lides de casa, atropelavam-lhe o tempo. No entanto, Josefa aproveitava cada momento que podia, por vezes minutos, para se divertir e dar asas à imaginação. “Eu passava muito tempo a ajudar em casa e quando podia gostava de brincar fora de casa, não o fazia muitas vezes, mas gostava muito… os tempos livres eram simples, mas muito felizes. Gostava de brincar ao ar livre com os meus irmãos, correr pelos campos e apanhar flores. Muitas vezes ajudava a minha mãe nas tarefas de casa, porque éramos uma família grande e era preciso colaborar. Quando chovia e não podíamos sair, ficávamos dentro de casa… eu fora de casa não parava quieta. Brincava às corridas e às bonecas também cheguei a brincar. Até tinha uma boneca de pano e gostava de a vestir e de arranjar as roupinhas dela. Gostava muito de brincar com a boneca porque foi um presente especial da minha mãezinha. Lembro-me bem de brincar, de subir às árvores para apanhar fruta e de fazer roupa para a boneca com trapos velhos”, recorda, através de uma nostalgia quase palpável. Uma infância de alguma necessidade, cedo obrigou ao trabalho e Josefa haveria de ser “levada” pelos tios para trabalhar como “servente” na Quinta do Cruzeiro, hoje um espaço para eventos bastante reconhecido na sua localidade. “Essa foi uma experiência que me ensinou muito sobre responsabilidade e sobre o trabalho árduo”, confidencia. Naquela época, Josefa, não teria como o adivinhar, mas aquela experiência, enquanto “servente”, seria uma verdadeira “rampa de lançamento” para uma longa carreira na hotelaria. Descendo a costa até ao Grande Hotel do Porto O tempo passava a grande velocidade e o tempo para brincadeiras ou até para namoricos tornavam-se cada vez mais escassos. As exigências do trabalho tomavam-lhe cada pedaço de tempo e, nesse passo acelerado, os vinte e dois anos de Josefa chegam num “piscar de olhos”. É precisamente com essa idade que, descendo a costa litoral, Josefa viaja até à cidade do Porto para, aí, continuar a robustecer uma sólida carreia na hotelaria. “Nessa altura, a disciplina e a ética de trabalho que aprimorei na Quinta do Cruzeiro, ajudaram a que me destacasse no setor de hotelaria, onde a atenção aos detalhes e a capacidade de trabalhar durante muitas horas seguidas são muito importantes”, afirma. A vida no Porto era muito diferente daquela à qual se habituara na sua terra natal. Sem desprimor por um paraíso como Vila Praia de Âncora, o Porto era já, nessa época, uma cidade vibrante e culturalmente rica, marcada por uma arquitetura tradicional portuguesa, pontificada pelos azulejos coloridos e fachadas ornamentadas. A vida social girava em torno dos bonitos cafés e das concorridas tertúlias, enquanto o Teatro Nacional São João e o Coliseu do Porto funcionavam como os baluartes culturais da cidade. O comércio do vinho do Porto era vital e visível, de qualquer ângulo mais elevado, na intensa atividade portuária gerada pelos barcos rebelo, nas suas vagarosas subidas e descidas do rio Douro. Os elétricos eram um meio de transporte mais comum. A Ponte D. Luís I conectava a cidade invicta a Vila Nova de Gaia e, de lá para cá e de cá para lá, com bênção do São João, misturavam-se as gentes, tripeiros e gaienses. No Porto, Josefa trabalharia primeiramente no Hotel Império e, posteriormente, no prestigiado Grande Hotel do Porto. “A experiência mais marcante da minha carreira foi quando comecei a trabalhar no Grande Hotel do Porto. Era um hotel de grande prestígio e exigia ainda mais profissionalismo e dedicação. Quando saí do Hotel Império, foi porque procurava melhores condições de trabalho e mais oportunidades de crescimento na hotelaria. Queria um ambiente onde pudesse continuar a aperfeiçoar as minhas competências e onde pudesse crescer profissionalmente”, afirma. “Os maiores desafios que eu tinha eram o ter de lidar com hóspedes exigentes e manter a excelência no serviço e também o volume de trabalho e a exigência constante de manter tudo impecável. Havia dias muito cansativos, onde o ritmo era acelerado e a responsabilidade era enorme. No entanto, sempre consegui superar esses desafios com esforço, organização e orgulho pelo meu trabalho… eu era muito perfeita no que fazia. Gostava de fazer bem o meu trabalho e se me chamassem a atenção, não gostava. Na verdade, nunca me chamaram à atenção. Fazia as camas, aspirava, limpava o pó, limpava as casas de banho, repunha as toalhas e tudo o que mais fizesse falta. Gostava daquele trabalho porque era um trabalho limpo”, acrescenta. Desses tempos, Josefa recorda com um especial carinho as festas do Santo padroeiro da cidade. “Aí, no São João havia muita música, balões e os martelinhos ou o alho porro. Tenho memória das danças nas festas. Saía à noite com as minhas colegas depois do trabalho e lá íamos dançar. Eu dançava direitinha e ainda escolhia o meu par. Só tenho pena de não manter contacto com as amigas que fiz quando trabalhava”, atira com lamento. Aos cinquenta anos, Josefa regressaria à sua Vila Praia de Âncora natal. Aí haveria de dar continuidade à sua missão de grande profissional da hotelaria, desta vez no conhecido Hotel Meira, até lhe chegar a idade da reforma. “Regressei para Vila Praia de Âncora com 50 anos e trabalhei no Hotel Meira até aos 65 anos, que foi quando fui saber dos meus direitos e me reformei… enquanto trabalhei, nunca pensei em mudar de carreira. Sempre gostei do meu trabalho na hotelaria. Era exigente, mas dava-me satisfação saber que fazia tudo com perfeição e dedicação. Nunca me chamaram à atenção, e isso era um motivo de orgulho para mim. Trabalhei muitos anos e, apesar das dificuldades, senti-me realizada pelo meu percurso profissional”, afirma convicta. Josefa casar-se-ia tardiamente com Rodrigo, um homem viúvo, oito anos mais velho, que conhecera através de uma amiga sua, irmã de Rodrigo. “Eu era amiga de uma irmã dele. Ele estava imigrado nos Estados Unidos com a mulher e tinha um filho. A senhora morreu com 70 anos e, após o falecimento da primeira mulher, ele veio para Portugal. Então eu conheci a irmã e depois, quando o conheci, reparei que ele era muito parecido com a irmã, no feitio. A gente começou a falar e o meu cunhado começou a dizer que ele era um bom moço e pronto, depois casamos pelo civil… ele era uma pessoa muito poupada, tal como era o pai dele… tínhamos muitos animais, patos, perus, galinhas e muita fruta e a gente tinha-se de sujeitar ao que havia em casa… Eu é que lhe dizia de vez em quando: ‘Rodrigo vai ao talho e compra uns bifinhos que só comemos a carne dos patos e dos perus que é bom, mas não sempre…’, recorda. “Não tivemos filhos, porque ele não quis. No entanto, não me arrependo de não ter tido. A vida deu-me sobrinhas que são como minhas filhas. Uma das minhas sobrinhas até é minha afilhada“, acrescenta. Lições aprendidas no exercício da constância Hoje, sempre que reflete sobre a sua vida, Josefa é perentória e objetiva nas considerações. “A vida apresentou-me muitos desafios, desde a perda precoce do meu pai e até o casamento, mas tentei superar esses desafios com resiliência, trabalho árduo, até com o apoio de familiares e amigos… Mas também posso dizer que aprendi muito. Aprendi que a dedicação e o esforço são fundamentais para alcançar o reconhecimento. A disciplina e a atenção aos detalhes foram lições valiosas que guardei para a vida. Além disso, aprendi a lidar com desafios com determinação, mantendo sempre a ética e o compromisso com um trabalho bem feito”, afirma. E de forma geral fui feliz. Diverti-me, viajei, por isso não foi tudo mau… com o meu marido, fomos duas vezes a Palma de Maiorca, à velha e depois à nova. Gostei mais da Palma de Maiorca velha do que da nova. Fui à Grécia e andei num cruzeiro, e ainda fui à Madeira. Hoje, acredito muito na importância de viver com honestidade, responsabilidade e respeito pelo próximo. Dou muito valor ao trabalho bem feito e ao esforço pessoal. Essa atitude traz sempre recompensas… desde pequena, aprendi que nada se conquista sem esforço e que é preciso lutar pelos nossos objetivos. Sempre procurei tratar os outros como gostaria de ser tratada. Também aprendi que, apesar das dificuldades, devemos aproveitar os momentos bons, porque a vida passa muito depressa. E também acredito que devemos aproveitar as coisas boas da vida e respeitar as tradições, a valorizar as pequenas coisas da vida, como uma boa conversa, uma refeição bem preparada ou uma festa bem celebrada”, acrescenta. Atualmente, a residir no Lar de Santa Rita de Cássia, uma unidade pertencente à Santa Casa da Misericórdia de Caminha, passa o seu tempo livre a fazer o que mais gosta. “Olhe gosto de ver televisão, ginástica não faço porque eu já caí duas vezes e magoei-me na coluna, por isso ando com o andarilho. Também gosto de ler, mas custa-me um pouco por causa da vista… mas também gosto muito de comer. Ai o cozido à portuguesa ou arroz de cabidela, só de pensar até já me está a crescer água na boca”, confidencia com um sorriso. Aos jovens de hoje, Josefa aconselha a que “se portem bem e a estudarem o melhor e o mais que puderem… a educação é essencial para se construir um futuro melhor“, assevera. Para um seu próprio futuro, que espera tão breve quanto possível, Josefa deseja voltar a viajar de avião. “Se a minha saúde permitisse, gostava muito de voltar a viajar, gosto muito de andar de avião e sempre adorei conhecer sítios novos, aprendi isso com o meu marido. Mas, acima de tudo, o que desejo é ter saúde para poder continuar a desfrutar da vida. Quero passar os meus dias com tranquilidade e descanso“, conclui. Josefa, com o seu espírito resiliente e a sua dedicação ao trabalho e à vida, é um exemplo de como, mesmo diante de dificuldades e desafios, é possível encontrar alegria e realização. A sua vida é uma celebração da honestidade, do compromisso e do respeito. Valores que, tal como defende, são essenciais para uma vida plena e gratificante. Agora, no sossego do Lar de Santa Rita de Cássia, Josefa continua a valorizar os pequenos prazeres da vida, mantendo acesa a chama da curiosidade e o desejo de viver novas aventuras, sendo possível, nas asas de um qualquer avião. A história de Josefa é um testemunho, uma dádiva, da força do espírito humano e da importância de uma vida com propósito, objetividade e paixão.
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