
Uma bioconversa com Maria Engrácia Taborda da Silva.
Maria Engrácia Taborda da Silva, utente do Centro Social e Paroquial de Vila Franca, nasceu a 27 de janeiro de 1928, na freguesia de Vila Franca, concelho de Viana do Castelo. Depois de uma infância marcada pelo trabalho árduo e pelas tradições religiosas do seu lugar e da sua família, casou-se com Augusto e juntos tiveram sete filhos. Apesar das dificuldades e de sucessivas superações de perda, manteve-se resiliente e apoiada pela fé. Hoje, fala-nos da Festa das Rosas, onde foi mordoma, da sua família unida, dos seus netos e bisnetos, refletindo para nós, como inspiração, o seu invulgar sentido de gratidão.
“Com a graça de Deus”, Maria Engrácia Taborda da Silva nasceu a 27 de janeiro de 1928, no lugar da Lomba, na freguesia de Vila Franca, em Viana do Castelo. Na sua singularidade, Vila Franca é uma daquelas aldeias minhotas com traços só seus. Encimada pelo romanizado Castro de Roques[1], é conhecida pela igreja dedicada a São Miguel, pela sua ligação umbilical a famílias nobres e pela Festa das Rosas[2], à qual haveremos de voltar mais adiante. Apelidada de São Miguel de Figueiredo por alturas do século XIII, “Vila Franca” haveria de adquirir o seu nome atual mais tarde, tanto na sua forma como no seu reflexo, pelos privilégios e liberdades concedidos aos precedentes de Maria Engrácia, alguns deles seus antepassados genealógicos. “Eu nasci em Vila Franca, no lugar da Lomba. Lá nasci, lá cresci e lá me casei. Depois de me casar é que vim morar para o lugar de Figueiredo e deixei o lugar da Lomba”, recorda.
Maria Engrácia nascera numa família comum para a época e, portanto, numerosa. Além dos pais, partilhava o dia a dia com os seus quatro irmãos. “A minha mãe chamava-se Rosa Ribeiro de Taborda e o meu pai chamava-se José Ribeiro da Silva Jesus. Além deles, éramos cinco irmãos em casa. Quatro raparigas e um rapaz… A nossa família era uma família muito religiosa, todos tínhamos de ir à missa. Em outubro e maio, ia-se mais à missa de manhã cedo, ainda íamos com uma lumieira de palha[3]. Éramos todos obrigados a ir. Tinha de ser. Em casa, todos os dias à noitinha, rezávamos o terço. E naquela altura, com o trabalho que havia em casa, para brincar também não sobrava grande tempo. Isso, para brincar um bocadinho, só na escola. Nós, em casa, trabalhávamos todos. Andávamos na lavoura com o meu falecido pai. Ai, eu e os meus irmãos, tínhamos de ajudar, que remédio! Quem comia também tinha de trabalhar, não era? Eu ainda andei na escola de Vila Franca. Cheguei a fazer a terceira classe e, olhe, deu para tudo. Chegou-me para eu conseguir seguir com a minha vida. Sinceramente, eu até não gostava muito da escola, mas tínhamos de andar na escola. Lá, apanhava muita porrada da professora. Ai isso é que ela cascava na gente. Olhe, lembro-me bem de uma vez, à minha irmã Maria, a professora chegou a partir-lhe um brinco, daqueles à rainha, que ela levava nesse dia. Eram outros tempos esses, ainda bem que agora a escola já não é assim. Mas olhe, eu da escola não gostava muito, não. Eu, fina de todo, não era. Bem, eu era como as outras! Ninguém pode dizer que era boa ou melhor do que a outra, penso eu. Mas olhe, além do aprender, na escola também brincávamos um bocadinho. Jogávamos, por exemplo, à corda, à macaca, ao jogo do meiinho, e a outras brincadeiras… mas, dessa altura, não foi só da escola e da lavoura que aprendi coisas, também as aprendi com a minha mãe. Com ela aprendi a bordar e também aprendi a trabalhar com renda”, afirma.
Com um brilho no olhar que lhe reforça o ligeiro, mas indisfarçável orgulho no rosto, Maria Engrácia recorda com especial carinho as tradições da sua terra natal. “As festas importantes aqui da terra sempre foram as Festas das Rosas. E olhe que a festa não mudou muito daquela que já se fazia no meu tempo. Lembro-me bem de quando fui na da Nossa Senhora do Rosário de Vila Franca do Lima, que é, então, mais conhecida como Festa das Rosas. Nesta festa, havia sempre jovens que eram as mordomas. E eu também fui mordoma, embora não tenha levado o cesto à cabeça. O meu marido, que na altura ainda era meu namorado, queria casar e, como casar e levar o cesto ficava bastante caro, achamos melhor eu não levar o cesto. O dinheiro era pouco e não dava para tudo! Mas fui na mesma com a vela, como era tradição. Naquela altura já havia, como há agora, missa e procissão. Não sei se sabe, mas os cestos floridos não eram feitos pelas mordomas. Muitas das mordomas trabalhavam e, então, contratavam pessoas mais antigas, pessoas que conheciam o ofício, para os fazerem por elas. Olhe, outra festa de que tenho boa memória era a da Nossa Senhora da Conceição, que é no dia 8 de dezembro. Essa também era uma festa bonita, também com procissão de velas à noite. Era muito emocionante essa festa. Recordo-me também de ter participado na Festa da Nossa Senhora da Agonia, na cidade de Viana, ainda antes de me casar. Cheguei a participar no cortejo e na procissão. Das roupas, lembro-me de ir vestida com uma saia, um avental… íamos assim, à antiga. Houve um ano em que até levei as minhas vacas. Agora já não tenho ido ver essa festa, mas que tenho saudades, lá isso tenho”, afirma com um sorriso, através do qual mal disfarça a nostalgia.
Da Lomba para bem mais perto do Castro de Roques
A infância repleta de tradições e árduo trabalho, ajudariam a moldar a resiliência e a fé de Maria Engrácia. De algum modo, prepararam-na para os duros desafios de uma vida adulta e para um casamento feliz, ao lado do seu conterrâneo Augusto Portela Lima. “Olhe casei com vinte e um anos. Foi em setembro de 1949. O meu marido chamava-se Augusto Portela Lima. Nós, até já nos conhecíamos, porque éramos ambos de Vila Franca. Ele morava no lugar de Figueiredo e eu morava no lugar da Lomba. É, foi assim! Casámos em setembro de 1949… casamos na nossa Igreja de São Miguel de Vila Franca, foi o Padre Quesado quem nos casou. Depois de nos casarmos, fomos viver para casa dos meus sogros em Figueiredo. Olhe, tivemos sete filhos. Amélia foi a primeira a nascer, nasceu nove meses depois do casamento. Nasceu no vinte de outubro. A seguir nasceu o meu filho David Eugénio da Silva Lima… depois tive a Clarinda, e a Goreti, a Sandrina,o José Augusto… E olhe, sempre nos demos todos bem”, afirma. “Eu, trabalhar, trabalhei sempre na Lavoura e com os animais. No início do casamento, o meu marido andava, por aqui, a fazer o que podia, como podar e outros trabalhos que apareciam, mas depois foi para a França. Esteve lá durante onze anos, mas vinha sempre cá. No primeiro ano que o meu marido foi para a França, nessa altura, ele esteve um ano sem vir a Portugal… veio só passar o Natal. Depois, houve um ano que veio a Portugal, de propósito, para fazermos a casa. Antigamente era tudo assim. Foi um pouco difícil, mas eu cá me arranjei. Sempre soube governar a minha vida, graças a Deus! Durante esses tempos em que ele lá estava, íamos trocando umas cartas, para matar as saudades. Eu, cá, na horta fazia por ter um bocado de tudo. Nunca vendi o que plantava, comia-se em casa. Olhe, em casa dos meus pais, cozia-se broa de quinze em quinze dias… ai que boa broa aquela! Que saudades dessa broa! Sabe, tínhamos muito milho e, de maneira que, dava para nós, para o pão e para os animais. Nunca vendíamos nada, era tudo para consumo da casa”, acrescenta.
Além da distância do seu par, a vida haveria de reservar a Maria Engrácia distâncias maiores, perdas de uma outra natureza, daquelas que nos cravam a alma e, talvez, nos façam questionar tantos maus julgamentos sobre a quase irrelevante dureza de outras dificuldades. “Sabe, tive momentos que me custaram muito. Perdi um filho quando ele tinha dois aninhos… num tanque de água. Foi um desgosto tão grande. Nessa altura não estava cá o meu marido. Lembro-me tão bem. Estávamos a desfolhar o milho e o menino andava a brincar. Quando fomos para casa, não dei por ele e fui à procura dele. Quando o encontrei, na água, já nada havia a fazer. Também tive um outro que não vingou no ventre… eu estava em casa dos meus pais quando isso aconteceu. Nesse tempo, apanhei uma pneumonia e, como não me dava, assim muito bem, com os meus sogros, os meus pais foram-me buscar para ficar em casa deles. Isso foi, também, numa outra altura em que o meu marido não estava cá. Tive essa perda espontânea e a Doutora Paula foi quem muito me ajudou nessa hora. Depois, já muito mais tarde, perdi o meu filho David. Tinha ele quarenta e poucos anos e partiu por via de uma doença. Foi muito triste. Não me deixavam ir visitá-lo no hospital porque podia ser contagioso. A seguir, partiu o meu marido… olhe, tudo isso foi muito difícil. O meu marido quando faleceu ainda não estava reformado. Lembro-me de ele andar já a tratar dos papeis para se reformar, mas não me recordo do ano. Tenho isso tudo escrito, mas a minha cabeça já não se lembra bem de todas essas coisas… mas recordo-me, ainda, de ir juntamente com o meu marido a São João d´Arga[4]. Fomos a pé desde o nosso lugar de Figueiredo até lá. O meu marido tinha uma promessa, andava a pão e água e como também tinha prometido ir lá a pé, eu acompanhei-o a São João d´Arga. Sempre nos entendemos muito bem um com o outro”, confidencia.
Um jardim que inspira
Como em qualquer roseiral, nem tudo são espinhos. Como tal, a parte mais colorida desse jardim trouxe, a Maria Engrácia, quatorze pétalas, doces e diferentes, que além do orgulho, lhe devolvem o tipo de alegria da qual se alimenta o ser. “Olhe, entre netos e bisnetos, tenho quatorze. Sou avó de dez netos e bisavó de quatro bisnetos, são todos diferentes e gosto muito de todos eles. Hoje vivo mais aqui, no Centro Social e Paroquial de Vila Franca, mas uns domingos passo em casa de uns, outros domingos na de outros. Damo-nos todos muito bem e vamos convivendo, que é o mais importante, enquanto cá estamos. Fora isso, agora, com esta idade que tenho, gosto mais é de estar sossegada, mas também gosto de fazer as atividades aqui do Centro e gosto de escrever e de conversar. Já comer, gosto de comer de tudo! Não sou nada esquisita. Como sopa todos os dias, tanto ao meio-dia como à noite”, afirma sorridente. “Sou e sempre fui uma mulher de muita fé, tal como as minhas filhas o são. Olhe, aprendi com a vida que ter fé o que nos salva nas horas más. Digo isso aos mais novos. E também lhes digo para serem sempre amigos dos seus pais, para serem educados, para se portarem bem. Digo também para trabalharem sempre bem, porque se não for assim, não ganham para aquilo que necessitam e para orientarem a vida. Olhe, a Festa das Rosas faz parte da vida, mas a vida não é sempre um mar de rosas. A vida tem coisas boas e coisas menos boas. Todas elas nos ajudam a crescer! Hoje, quando olho para trás e me lembro de certas coisas… sabe, a memória já não é a mesma, mas vejo que houve momentos em que fui muito feliz e outros que nem por isso. Agora, com esta idade, quero é andar bem na minha vida, até chegar a minha hora. Sinto-me bem e, apesar de tudo, sinto-me muito contente e feliz com a minha família, com a família que criei”, conclui.
Maria Engrácia, mulher de nome raro, de graça e de favor, nascida no meio das rosas, transmite-nos a elegância, tantas vezes despercebida, de uma vida simples. Apesar dos desafios e das perdas, que lhe vestiram de história própria o coração, soube encontrar forças, através da aceitação daquela porção incontrolável e intangível do destino, da qual todos herdamos um pouco, para seguir em frente. Apoiada na sua fé e no amor da família, lega-nos a inspiração de que, mesmo nos momentos mais sombrios da caminhada, é sempre possível encontrar uma luz de esperança e, querendo, experimentarmos uma vez mais a gratidão.
[1] O Castro de Roques, também conhecido como Monte Santinho, é um sítio arqueológico que contém vestígios de um antigo povoado fortificado da Idade do Ferro. A sua área extensa abrange várias freguesias, incluindo Vila Franca, sendo um dos maiores castros do norte de Portugal. Este local é um exemplo de castros que foram romanizados, conforme demonstram diversos artefactos encontrados no local, alguns dos quais estão depositados e em exposição no museu Casa dos Nichos, em Viana do Castelo.
[2] A Festa das Rosas em Vila Franca, Viana do Castelo, ocorre no segundo fim de semana de maio. Este evento, com mais de 400 anos de história, inclui o Desfile dos Cestos Floridos, onde as mordomas carregam, à cabeça, cestos decorados com folhas, botões e pétalas de flores naturais, principalmente rosas. Além do desfile, a festa promove várias atividades culturais e religiosas, como procissões, festivais de folclore, exposições de artesanato e espetáculos musicais. A Festa das Rosas é uma expressão do património cultural e imaterial da região, atraindo muitos visitantes anualmente.
[3] Pequeno rolo de palha, do tipo tocha, utilizado para iluminar o caminho.
[4] São João d’Arga, também conhecida como Mosteiro de São João d’Arga, localiza-se na Serra d’Arga, no concelho de Caminha. Este santuário medieval, construído no final do século XIII, é um importante testemunho histórico, dos mais conhecidos da região. A capela deste antigo mosteiro apresenta uma arquitetura românica, com planta poligonal e panos murários sólidos. Durante a Romaria de São João d’Arga, realizada nos dias 28 e 29 de agosto, esta capela serve como ponto central para atividades religiosas e celebrações. O recinto do mosteiro inclui também albergues para romeiros de todas as idades, que numa jornada de esforço e sentido de pertença comunitária, sobem à serra para o cumprimento de promessas e para participarem nestas genuínas festividades.
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