
Uma bioconversa com Ana Maria Alves da Rocha.
Ana Maria Alves da Rocha, nasceu em Deão, uma freguesia do concelho de Viana do Castelo, no ano de 1952. Mulher de coragem e resiliência, enfrentou, na tenrura da idade, problemas de saúde e responsabilidades familiares. Trabalhou na antiga fábrica da Portucel por vinte e nove anos, onde galgou várias promoções e foi um exemplo de trabalhadora-estudante, premiada pelo mérito. Embora nunca tenha casado ou tido filhos, Ana Maria encontrou alegria nas conquistas pessoais e profissionais, nas viagens e na sua capacidade de superar adversidades. Agora, aos setenta e dois anos, frequenta o Centro de Dia do Centro Paroquial e Social de Lanheses, onde continua a partilhar sabedoria e a exemplificar quotidianamente a riqueza de viver de forma plena.
Ana Maria Alves da Rocha, nasceu no dia trinta e um de agosto de mil novecentos e cinquenta e dois nas bonitas terras de Deão. Inserida na atual União de Freguesias de Geraz do Lima (Santa Maria, Santa Leocádia e Moreira) e Deão, Deão é uma localidade coronária do concelho de Viana do Castelo. Um lugar onde a história e a natureza se entrelaçam em harmonia, dando origem à bondade das suas gentes. Talvez o leitor desconheça, mas em Portugal, com exceção feita à metade de meia dúzia de ruas, não existirá outra terra de nome tão peculiar. Ainda hoje utilizado pela Igreja Católica, em referência a um dignitário ou responsável máximo de um grupo clerical, a etimologia do termo Deão sugere a ligação à palavra latina “decanus“, que significa “comandante de dez soldados” ou “líder“. Neste caso, porventura, em referência à ancestralidade da presença de um líder romano ou clerical no território. Não sendo certa a teoria, são, por outro lado, verificáveis, de forma não vestigial, antes bem evidente, a coragem, o otimismo realista e a resiliência – características naturais de um líder – bem herdadas pela rica tapeçaria de traços de personalidade, revelados e impressos por Ana Maria, na superfície de cada letra, ao longo destas próximas linhas.
“Eu nasci em Deão, no lugar do Monte, e vivi a minha infância com os meus pais e com as minhas irmãs. Somos cinco irmãs e eu era a mais velha. Na verdade, vivi em Deão praticamente toda a minha vida, mas os primeiros tempos, logo depois de nascer, passeio-os em Lisboa. Eu nasci com uma espécie de picada, no lado direito da cara, que foi alastrando. Fui ficando com uma mancha escura na cara, até ao pescoço. Os meus pais, para me tratarem, tiveram de me levar para Lisboa, para um hospital de lá, para receber um tratamento com pequenos choques elétricos. Era o que se fazia na altura… estive lá em tratamento, nesse hospital e fiquei com os meus pais, em Lisboa, quase três anos. Depois, quando melhorei, regressamos”, afirma Ana Maria.
“Em Deão, a minha mãe trabalhava como criada de servir, numa quinta, e nós vivíamos lá, nessa quinta. Mais tarde, os meus pais compraram uma casa na freguesia e mudamos para lá… Eu, desde pequena, ajudava a minha mãe em casa e nas tarefas da lavoura. Recordo-me de quando cozinhei, pela primeira vez, arroz sozinha. Eu tinha cinco anos, mas ninguém conseguiu comer aquilo porque estava sem sal e o arroz tinha ficado todo melado. E na lavoura, olhe, fazia de tudo e mais alguma coisa. Andava com o arado, com o semeador, com o sachador, eram tempos duros. Na lavoura, para mim, as madrugadas eram muito difíceis. Eu começava a trabalhar logo de madrugada e só depois é que ia para a escola… depois quando eu tinha doze anos, a minha mãe foi internada e o meu pai foi com ela, de táxi. Nessa altura eu tive de começar a cuidar das minhas irmãs, até que ela regressasse. Também tinha de cozinhar e, pela primeira vez, fiz pão. Aí que bom que estava esse pão! Nunca cozi pão tão bom como aquele! Que boa lembrança! Atualmente, não imagino as crianças a passarem por isso. Felizmente, apesar disso, do trabalho na lavoura e em casa, os meus pais puseram-me na escola. Muitos não iam, mas eu andei lá. Andei na escola primária de Deão e, mais tarde, na telescola, também em Deão… Quando chovia, lembro-me bem! Como não existiam guarda-chuvas, no inverno eu ia com um capucho na cabeça, descalça, mesmo com o chão gelado. Ia eu e iam os outros. Era assim, com um capucho de linhagem pela cabeça, levávamos os livros da escola num saco e lá ia a gente! Só mais tarde, como o meu pai tinha ido para a França, lá me conseguiu arranjar uma pasta em couro”, revive.
“Eu brincava muito. Saltava à corda, jogava à meca. Eram as brincadeiras daquela altura… Na escola, gostava muito de matemática e nunca precisei de usar uma calculadora… uma vez estava numa aula e tínhamos de resolver um problema, nem o professor sabia a solução. No dia seguinte, cheguei lá e disse que já sabia resolver o problema. Ele preguntou-me como é que eu tinha descoberto e eu disse: ‘foi a sonhar’. Ele não acreditou no que eu lhe disse e mandou-me ir resolver o problema ao quadro. Assim fiz e o meu raciocínio estava certo. Resolvi o problema a sonhar, durante a noite. Parece impossível, mas foi verdade!”, acrescenta com orgulho.
Uma carreira na Portucel[1]
Os anos passam e, sob a supervisão do padroeiro de Deão, São Sebastião, o tempo da infância e adolescência de Ana Maria “pareciam voar”. À velhinha mala de couro já não acompanhavam apenas os livros. Ao seu lado caminhava, agora, uma jovem cada vez mais determinada, uma mente cada vez mais curiosa, sem obliterar a diversão, com uma vontade agregada e apostada em viver e vingar, em construir uma carreira.
“Eu, na minha mocidade, corria as festas todas de Deão, de Deocriste, de Subportela, de Vila Franca e também ia à festa de Santo Antão, em Lanheses. Dançar é que nunca soube. Até havia um rancho folclórico infantil, mas eu nunca andei no folclore. Os meus pais não me deixavam… e também não me deixavam ir aos bailaricos, mas nós lá arranjávamos maneira. E olhe, íamos descalças, para não estragar os sapatos! Só os calçávamos quando estivéssemos mesmo a chegar perto da festa. Fazíamos assim: chegávamos perto, lavávamos os pés com um bocadito de água, metíamos os sapatos nos pés e siga para a festa”, recorda com um sorriso bem humorado.
“Depois, já com vinte e um anos comecei a trabalhar na fábrica da Portucel. Lembro-me bem, foi em 1963. Quando fui para lá, comecei a trabalhar nas limpezas. Depois passei pelas fotocópias e, mais tarde, integrei o setor de planificação. Aí, nesse setor, planeávamos as bobines que eram produzidas para saírem e eu fui continuando sempre a evoluir até que, um dia, passei a escriturária de primeira. Olhe, trabalhei lá, na Portucel, durante vinte e nove anos, sempre a subir na carreira. Eu sabia fazer de tudo. Qualquer pessoa que faltasse, eu estava sempre disposta para ajudar. Depois, reformei-me aos quarenta e nove anos, por motivo de doença. Mas posso dizer que trabalhar era algo que me fazia muito feliz. Aprendi muito! Durante esse tempo também comecei a estudar à noite no liceu, em Viana do Castelo, para conseguir ter mais estudos. Foi um esforço grande, mas foi um esforço que compensou! Olhe, um dia, o Doutor Borges, que era diretor da fábrica, pediu para falar comigo. Fui ter com ele e ele disse-me assim: ‘A Ana Maria vai mudar de trabalho. Enquanto as suas colegas ficaram ao lume, você andou de noite a estudar’. Nesse momento, senti que o meu esforço tinha sido recompensado e foi”, acrescenta com orgulho.
“O tempo foi passando e, casar, nunca casei, mas namorei, tive os meus namoricos… até havia um moço de Deocriste que dizia que só queria casar comigo! Eu respondia-lhe: ‘Se queres casar comigo estás bem lixado’. Depois, ele casar casou, mas não foi comigo. Sinceramente, nunca senti que algum dos namorados, que eu tive, fosse aquele com quem eu queria para passar o resto da minha vida. E, por isso, não me arrependo por não me ter casado. Depois, também devido aos vários problemas de saúde que tenho, não pude ter filhos. Hoje percebo melhor que também foi uma das razões pelas quais não me quis casar. Essa foi uma decisão difícil, mas foi a melhor escolha que eu poderia ter feito. Sinto-me bem pela tomada de decisão, apesar de difícil, como disse… Sabe, podia ser perigoso ter filhos, no parto podia morrer eu e a criança! É claro, que pensei em ter filhos quando era mais nova, mas não era capaz de colocar uma criança em perigo por causa dos meus problemas de saúde. A adoção também me passou pela cabeça, mas preferi não avançar com isso”, afirma.
“Sabe, ao longo da minha vida, acabei por ter de enfrentar vários problemas de saúde, foi por isso mesmo que me reformei muito cedo. E das recordações que mais me custam, são mesmo essas, sobre as doenças. Andei em vários hospitais, corri tudo! Desde Lisboa, Porto, Braga a Viana do Castelo. A minha vida foi muito marcada pelas minhas complicações de saúde. Olhe, tive problemas na tiroide, tive um tumor, um aneurisma, ao qual fui operada e depois disso comecei a ter ataques epiléticos. E pronto. Foi mesmo difícil quando tive de deixar de trabalhar. Gostava de ter continuado, mas foi nessa altura que me apareceu o tumor na cabeça. Foi difícil deixar pela doença, mas teve mesmo de ser. Olhe, foi difícil deixar trabalhar pela doença, mas custou-me ainda mais quando a minha mãe faleceu. Ainda hoje sinto a falta da minha mãe! Custou-me muito. Sempre vivemos juntas e faleceu com noventa e um anos”, adita.
O merecido descanso da guerreira
Hoje aos setenta e dois anos, a frequentar o Centro de Dia do Centro Paroquial e Social de Lanheses, Ana Maria é uma mulher cheia de vida, de saber e sapiências bem solidificadas, daquelas, das quais, se fazem as gentes, cujo legado merece ser celebrado de honra e na sua existência.
“Os meus problemas de saúde nunca me impediram de nada. Só agora é que sinto um pouco mais de dificuldades devido aos ataques epiléticos. Olhe, sempre sonhei viajar e concretizei esse desejo várias vezes. Já percorri a Espanha toda de férias. Fui a Palma de Maiorca, também fui a Cabo Verde, à Tunísia, à Itália. Comecei a viajar quando já trabalhava na Portucel. Lembro-me bem da primeira vez que viajei. Fui com um colega de trabalho e com a família dele. Fomos a Espanha. Depois disso, ia quase sempre sozinha. Para mim, viajar era muito importante, gostava de conhecer sítios novos, fazia-me bem saber das coisas, conhecer a cultura de outras pessoas e de outros lugares. Agora torna-se mais difícil viajar, porque já necessito do andarilho para me poder deslocar. Mas olhe, ainda há pouco tinha o sonho de ir ao Brasil, mas perdi a ideia, depois de uma amiga minha me dizer que era muito perigoso ir sozinha”, confidencia.
“Agora, estou no Centro de Dia do Centro Paroquial e Social de Lanheses, mas quando as minhas irmãs me falaram de vir para cá, eu só lhes respondi: ‘é a pior coisa que me podeis fazer’”. Mas olhe, hoje, dou-me bem com toda a gente e sinto-me muito bem aqui. Gosto muito de ver televisão e das redes sociais. E aprendi sozinha, com a minha cabeça, a ir às redes sociais. Da comida não sou nada esquisita. Só não gosto é de comer carne de porco. De resto, como de tudo. Mas pronto, agora tenho um pouco mais de dificuldade em comer porque me engasgo com alguma facilidade”, acrescenta.
“Quando penso em outros tempos, sinto que, mesmo com os problemas de saúde que tive e tenho, fui feliz e fiz o que quis. Nunca nenhum dos meus problemas de saúde me limitaram. Ainda hoje, tento manter-me ativa e ajudar nas lides domésticas. Acredito que é importante sermos ativos e digo também isso aos mais novos. A serem ativos e a estarem atentos às oportunidades no trabalho, para poderem gozar a vida, viajar, conhecer o mundo, porque isso abre-nos os horizontes… e para estudarem, para não serem malandros, para se fazerem à vida e para respeitarem os outros. Eu, por exemplo, acredito em Deus. Foi uma coisa que nos ensinaram desde pequenos, à minha geração. E sempre me dei bem com todos. Na Portucel, por exemplo, havia pessoas que tinham outras religiões e eu não tinha problemas com isso. É importante respeitarmos toda a gente e fazermo-nos à vida, por grandes que pareçam, às vezes, as dificuldades. Eu assim fiz e hoje sinto que fiz tudo o que queria na vida. Olhe, não mudava nada na minha vida! Não posso dizer outra coisa: sinto-me realmente realizada!”, conclui.
E assim, a vida de Ana Maria é hoje um testemunho de resiliência, determinação, alegria e de valores a partir dos quais se constroem comandantes. Cada dificuldade enfrentada, cada obstáculo ultrapassado e cada sonho concretizado são as insígnias que construíram a história de uma mulher sempre superior às suas próprias adversidades. Ana Maria é a personificação de um espírito humano inquebrável e inspirador que nos recorda, com os seus sempre presentes sorriso e otimismo, que devemos ser o farol da nossa própria vida e os comandantes da nossa própria esperança.
[1] A Portucel, como a apelida Ana Maria, é uma fábrica de produção papel, situada em Deocriste, Viana do Castelo, anteriormente conhecida como Portucel Viana e Celnorte. Esta fábrica começou a operar em 1974, tendo sido nacionalizada em 1976. Voltou a ser privatizada nos anos 2000 e adquirida pelo grupo Europac. Em 2019, a DS Smith comprou a Europac, tornando-se a sua atual proprietária. Esta fábrica é um dos baluartes da indústria vianense e líder na produção de papel canelado, para embalagem, na Península Ibérica.
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